Ainda
de calças curtas, sem entender bem o que acontecia, descobri a
poesia de Manuel Bandeira. Na sala de aula, enquanto o professor
falava das escolas literárias e da importância das influências, eu
lia Bandeira, o livro camuflado entre meus cadernos, como algo
vergonhoso ou obsceno. Lia e sufocava.
Um
dia, um professor desmascarou minha paixão secreta. Perguntou-me o
que tanto lia e, ainda com mais raiva, por que eu escondia meu livro.
Lembro apenas que me veio um desses silêncios opressivos, que surgem
entre a timidez e o orgulho, e que deixam os meninos com cara de
patetas, mas a nós, homens maduros, com a máscara de sábios.
Indiferente
às minhas razões, o professor exigiu que eu passasse a anotar as
lições expostas no quadro-negro. E que guardasse os poemas de
Bandeira – lembro bem de suas palavras – para “a hora certa”.
Continuei a ler Bandeira nos intervalos das aulas, nas mesas do
refeitório ou escondido no banheiro dos alunos. Tornou-se uma paixão
secreta.
Nunca
soube explicar o que me prendeu a seus versos. Nem a Bandeira, que me
trazia a sensação vaga de desmaio, nem aos poemas rochosos de João
Cabral, que descobri pouco depois e que me feriam como socos. Nunca
entendi direito o sentimento de plenitude, de ser erguido em pleno
ar, que me tomou quando li os primeiros sonetos de Vinicius. Eles são
os meus clássicos, os livros que me fundaram.
Agora,
à sua sombra, me cai nas mãos um livro que pretende regrar a
experiência devastadora por que passei. Chama-se O prazer de ler
os clássicos, do norte-americano Michael Dirda (Martins Fontes,
tradução de Rodrigo Neves). Conceituado crítico do Washington
Post, Dirda faz um esforço comovente para nos aproximar dos
grandes clássicos. Quero reafirmar, logo, que seu esforço, de fato,
me comove. Espelho-me um pouco nele – eu que, há poucas semanas,
só para dar um exemplo, terminei de escrever 45 verbetes para a
versão brasileira do dicionário britânico Mil livros para ler
antes de morrer, a ser lançado em breve pela Sextante.
Todos
(eu mesmo) temos a ilusão de que é possível transmitir uma paixão.
E apostamos nisso. No caso de Michael Dirda, os obstáculos se
agravam, pois todos sabemos o quanto a expressão “os clássicos”
nos assusta e intimida. A ela associamos o peso desagradável dos
anos e o desconforto que nos provocam as coisas antigas. Parecem
exigir de nós, ainda, um deslocamento excessivo, e perigoso, em
relação ao presente. Achamos, todos, que devemos ler os clássicos,
que é importante ler os clássicos, mas quase nunca os lemos.
O
problema é: que clássicos? Em um vigoroso esforço didático, Dirda
– para facilitar a vida do leitor, para protegê-lo – nos oferece
uma visão “fatiada” dos clássicos universais. De um lado as
“fantasias jocosas”, de outro “os mistérios do amor”, mais à
frente os “relatos de viagem” e logo depois as “visões
enciclopédicas”. Nessas prateleiras – como um respeitável
gerente de livraria –, ele distribui autores extraordinários como
Plutarco, Cícero, Espinosa, W.H. Auden, Kipling e Pound.
É
sensato pensar: aqueles que dão os primeiros passos no obscuro
cenário da literatura necessitam de alguma ordem, ou se perderão.
Eu mesmo, muitas vezes, penso assim. Outras vezes, não penso. Volto
a minhas calças curtas. Enquanto eu lia Bandeira, meu professor
expunha no quadro-negro – como uma receita de bolo – a grade
consoladora dos grandes períodos literários. Arcadismo, Romantismo,
Realismo, Simbolismo – e, quase sempre, se detinha aí, pois o
Modernismo lhe parecia impróprio para meninos. Eu mesmo, agora,
enquanto escrevia os verbetes dos Mil livros, me apeguei, com
fervor, a essas categorias – clássicas (eis a palavra) e, por
isso, inevitáveis. É verdade que, tanto quanto consegui, anotei as
lições de meu professor e as estudei em casa.
É
verdade, também, que elas, ainda hoje, me orientam, como uma pequena
lanterna que empunhamos no meio de uma floresta. Quem, na escuridão,
pode dispensá-la? Eu, pelo menos, não posso, pois sei que – como
óculos que pesam sobre o nariz e apertam a testa – elas me ajudam
a ver. No entanto, preciso perguntar: foi ali, entre aqueles séculos
bem divididos e lustrados, ou foi no fogo de Bandeira, que a
literatura me pegou?
Talvez
a resposta correta possa ser: eu não conseguiria chegar a um se não
tivesse o outro. Tudo depende, também, de como lemos as lições que
nos transmitem; para mim, nomes como Romantismo ou Simbolismo
despertam, até hoje, o mesmo calafrio que sinto quando ouço falar
das paredes do Everest ou do mar de Madagascar. Em sua introdução,
o próprio Michael Dirda se apressa em afastar a literatura de
qualquer forma de adestramento. Diz: “Os clássicos são clássicos
não por serem educativos, mas porque as pessoas consideraram que
mereciam ser lidos, geração após geração, século após século”.
Se
hoje, enquanto leio Dirda, escrevo sobre Bandeira – que não
aparece no livro de Dirda –, só confirmo suas palavras. Talvez
devamos ler O prazer de ler os clássicos não para lembrar,
mas para esquecer. Ele é o portal que nos conduz ao grande jardim.
Como a Alice, de Lewis Carroll, diante de sua porta minúscula, que
luta e luta para atravessar e assim chegar à luz do sol, nós também
precisamos do esforço de uma travessia.
Penso
nos nadadores olímpicos especializados em saltos ornamentais, cuja
tarefa seria impossível sem a existência dos trampolins. Postados
sobre eles, se aprumam, respiram, planejam seus movimentos. Da
plateia, ansiosos, nós os observamos. Mas, a partir do momento em
que eles saltam, aquele trampolim não existe mais, é só uma
prancha de madeira que ficou, esquecida, lá no alto. Tudo o que nos
interessa agora é a dança dos corpos no ar.
E
no entanto, sem o trampolim – sem os livros de referência, sem os
grandes resumos –, a beleza desse salto seria impossível. Contudo,
não foi no trampolim, mas em si mesmos, na sensação de prazer
provocada pela água, que esses saltadores (como eu em Bandeira)
descobriram sua paixão. Mas sem um solo firme de onde partir, sem
esse velho trampolim, nossa paixão não seria nada.
José
Castello, in Sábados Inquietos
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