quinta-feira, 22 de novembro de 2018

Acalanto para uma pequena morte

Odete insistia para abandonarem Angola. O marido ciciava, em resposta, palavras ríspidas. Elas podiam ir. Os colonos deviam embarcar. Ninguém os queria ali. Um ciclo se cumprira. Começava um tempo novo. Viesse sol ou temporal, nem a luz futura, nem os furacões por desatar iluminariam ou fustigariam portugueses. O engenheiro ia-se enfurecendo à medida que sussurrava. Podia enumerar durante horas os crimes cometidos contra os africanos, os erros, as injustiças, os despudores, até que a esposa desistia, e se fechava a chorar no quarto dos hóspedes. Foi uma enorme surpresa quando chegou a casa, dois dias antes da Independência, e anunciou que na semana seguinte estariam em Lisboa. Odete abriu muito os olhos:
Porquê?
Orlando sentou-se numa das poltronas da sala de visitas. Arrancou a gravata, desabotoou a camisa, e, por fim, num gesto estranho nele, descalçou os sapatos e pousou os pés na mesinha de apoio:
Porque podemos. Agora podemos partir.
Na noite seguinte o casal saiu para mais uma festa de despedida. Ludo esperou por eles, lendo, tricotando, até às duas da manhã. Foi-se deitar inquieta. Dormiu mal. Levantou-se às sete, vestiu um robe, chamou a irmã. Ninguém respondeu. Teve a certeza de que acontecera uma tragédia. Esperou mais uma hora antes de procurar a agenda dos telefones. Ligou primeiro para os Nunes, o casal que organizara a festa, na noite anterior. Atendeu um dos empregados. A família saíra para o aeroporto. O senhor engenheiro e esposa haviam estado na festa, sim, mas por pouco tempo. Ele nunca vira o senhor engenheiro tão bem disposto. Ludo agradeceu e desligou. Voltou a abrir a agenda. Odete riscara, a tinta vermelha, os nomes dos amigos que haviam abandonado Luanda. Restavam poucos. Só três atenderam e nenhum sabia de nada. Um deles, professor de matemática no Liceu Salvador Correia, prometeu telefonar a um polícia amigo. Ligaria mal conseguisse alguma informação.
Passaram-se horas. Começou um tiroteio. Primeiro disparos isolados e depois o crepitar intenso de dezenas de armas automáticas. O telefone tocou. Um homem que lhe pareceu ainda jovem, com sotaque lisboeta, de boas famílias, perguntou se podia falar com a irmã da Doutora Odete.
O que aconteceu?
Calma, minha senhora, só queremos o milho.
O milho?!
A senhora sabe muito bem. Entregue-nos as pedras e dou-lhe a minha palavra de honra que a deixamos em paz. Nada lhe acontecerá. Nem a si, nem à sua irmã. Se quiserem, regressam as duas à metrópole no próximo avião.
O que fizeram à Odete e ao meu cunhado?
O velho portou-se de forma irresponsável. Há pessoas que confundem estupidez com coragem. Sou oficial do exército português, não gosto que me tentem enganar.
O que lhe fizeram? O que fizeram à minha irmã?
Resta-nos pouco tempo. Isto pode resolver-se a bem ou a mal.
Não sei o que pretende, juro, não sei…
Quer voltar a ver a mana? Fique quietinha em casa, não tente avisar ninguém. Logo que a situação acalme um pouco passaremos pelo seu apartamento para buscar as pedras. A senhora entrega-nos a encomenda e libertamos a Doutora Odete.
Disse isto e desligou. Fizera-se noite. Balas tracejantes riscavam o céu. Explosões sacudiam as vidraças. Fantasma escondera-se atrás de um dos sofás. Gemia baixinho. Ludo sentiu uma tontura, uma agonia. Correu até à casa de banho e vomitou na retrete. Sentou-se no chão a tremer. Mal recuperou as forças, dirigiu-se ao escritório de Orlando, onde só entrava, a cada cinco dias, para varrer o chão e limpar o pó. O engenheiro mostrava muito orgulho na escrivaninha, um móvel solene, frágil, que um antiquário português lhe vendera. A mulher tentou abrir a primeira gaveta. Não conseguiu. Foi buscar um martelo e partiu-a com três pancadas furiosas. Encontrou uma revista pornográfica. Afastou-a, enojada, descobrindo, debaixo dela, um maço de notas de cem dólares e uma pistola. Segurou a arma com ambas as mãos. Sentiu-lhe o peso. Acariciou-a. Era com aquilo que os homens se matavam. Um instrumento denso, escuro, quase vivo. Revirou o apartamento. Não encontrou nada. Finalmente, estendeu-se num dos sofás da sala de visitas e adormeceu. Despertou em sobressalto. Fantasma puxava-a pela saia. Rosnava. Uma brisa vinda do mar erguia molemente as finas cortinas rendadas. Estrelas flutuavam no vazio. O silêncio ampliava a escuridão. Um frémito de vozes subia do corredor. Ludo levantou-se. Caminhou, descalça, até à porta de entrada e espreitou pelo olho mágico. Lá fora, junto aos elevadores, três homens discutiam em voz baixa. Um deles apontou para ela – para a porta – com um pé de cabra:
Um cão, tenho a certeza. Ouvi um cão a ladrar.
Como é Minguito?!, criticou-o um sujeito seco, minúsculo, vestido com um dólmen militar excessivamente largo e comprido: Não há ninguém aqui. Os colonos bazaram. Vá. Arromba essa merda.
Minguito avançou. Ludo recuou. Ouviu a pancada e, sem refletir, devolveu-a, um soco brutal, na madeira, que a deixou sem fôlego. Silêncio. Um grito:
Quem está aí?
Vão-se embora.
Risos. A mesma voz:
Ficou uma! Como é mamã, esqueceram-se de você?
Vão-se embora por favor.
Abre a porta, mamã. A gente só quer o que nos pertence. Vocês nos roubaram durante quinhentos anos. Viemos buscar o que é nosso.
Tenho uma arma. Ninguém entra.
Senhora, fica só calma. Você nos dá as joias, algum dinheiro, e a gente vai embora. Também temos mães, nós.
Não. Não vou abrir.
OK. Minguito, arromba lá isso.
Ludo correu ao escritório de Orlando. Agarrou na pistola, avançou, apontou-a para a porta de entrada e carregou no gatilho. Recordaria o momento do tiro, dia após dia, durante os trinta e cinco anos que se seguiram. O estrondo, o ligeiro salto da arma. A breve dor no pulso.
Como teria sido a sua vida sem aquele instante?
Ai, sangue. Mamã, você me matou.
Trinitá! Meu camba, você está ferido?
Bazem, bazem…
Tiros, na rua, muito perto. Tiros atraem tiros. Solte-se uma bala no céu e logo dezenas de outras se juntarão a ela. Num país em estado de guerra basta um estampido. O escape deficiente de um carro. Um foguete. Qualquer coisa. Ludo aproximou-se da porta. Viu o orifício aberto pela bala. Encostou o ouvido à madeira. Escutou o surdo arfar do ferido:
Água, mamã. Me ajude…
Não posso. Não posso.
Por favor, senhora. Estou a morrer.
A mulher abriu a porta, tremendo muito, sem largar a pistola. O assaltante estava sentado no chão, apoiado à parede. Não fosse a espessa barba, muito negra, e julgá-lo-ia uma criança. Rosto miúdo, suado, olhos grandes que a fitavam sem rancor:
Tanto azar, tanto azar, não vou ver a Independência.
Desculpe, foi sem querer.
Água, tenho bué de sede.
Ludo lançou um olhar assustado para o corredor.
Entre. Não o posso deixar aqui.
O homem arrastou-se para dentro, gemendo. A sombra dele continuou encostada à parede. Uma noite se desprendendo de outra. Ludo pisou aquela sombra com os pés nus e escorregou.
Meu Deus!
Desculpe, avó. Estou a sujar a casa.
Ludo fechou a porta. Trancou-a. Dirigiu-se à cozinha, procurou água fresca na geladeira, encheu um copo e regressou à sala. O homem bebeu com sofreguidão:
O que precisava mesmo era dum copito de ar fresco.
Eu devia chamar um médico.
Não vale a pena. Me matavam igual. Canta uma canção, avó.
Como?
Canta. Canta para mim uma canção macia tipo sumaúma.
Ludo pensou no pai, trauteando velhas modinhas cariocas para a adormecer. Pousou a pistola no soalho, ajoelhou-se, agarrou entre as suas as minúsculas mãos do assaltante, aproximou a boca do ouvido dele, e cantou.
Cantou durante muito tempo.
Mal a primeira luz acordou a casa, Ludo encheu-se de coragem, agarrou no morto ao colo, sem muito esforço, e levou-o para o terraço. Foi buscar uma pá. Abriu uma cova estreita num dos canteiros, entre rosas amarelas.
Meses antes, Orlando começara a construir no terraço uma pequena piscina. A guerra interrompera as obras. Os operários haviam deixado sacos de cimento, areia, tijolos, encostados aos muros. A mulher arrastou algum do material para baixo. Destrancou a porta de entrada. Saiu. Começou a erguer uma parede, no corredor, separando o apartamento do resto do prédio. Levou a manhã inteira nisso. Levou a tarde toda. Foi apenas quando a parede ficou pronta, após alisar o cimento, que sentiu fome e sede. Sentou-se à mesa da cozinha, aqueceu uma sopa e comeu devagar. Deu um resto de frango assado ao cão:
Agora somos só tu e eu.
O animal veio lamber-lhe as mãos.
O sangue secara, junto à porta de entrada, formando uma mancha escura. Marcas de pés saíam dali a caminho da cozinha. Fantasma lambeu-as. Ludo afastou-o. Foi buscar um balde com água, sabão, uma escova, e limpou tudo. Tomou um duche quente. Ao sair da banheira o telefone tocou. Atendeu:
As coisas complicaram-se. Não conseguimos passar ontem para apanhar o material. Iremos daqui a pouco.
Ludo desligou sem responder. O telefone voltou a tocar. Sossegou um instante, mas mal a mulher deu costas retomou a gritaria, nervoso, a exigir atenção. Fantasma veio da cozinha. Pôs-se a correr em círculos, ladrando, feroz, a cada tinido. Subitamente saltou sobre a mesa, derrubando o aparelho. A queda foi violenta. Ludo sacudiu a caixa preta. Dentro dela alguma coisa se soltara. Sorriu:
Obrigada, Fantasma. Acho que não nos aborrecerá mais.
Lá fora, na noite convulsa, explodiam foguetes e morteiros. Carros buzinavam. Espreitando pela janela, a portuguesa viu a multidão avançando ao longo das ruas. Enchendo as praças com uma euforia urgente e desesperada. Fechou-se no quarto. Estendeu-se na cama. Afundou o rosto na almofada. Tentou imaginar-se muito longe dali, na segurança da antiga casa, em Aveiro, assistindo a filmes antigos na televisão enquanto saboreava chá e trincava torradas. Não conseguiu.
José Eduardo Agualusa, in Teoria Geral do Esquecimento

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