A Gemini V em exposição na Praça da Sé, em São Paulo, em 1966 - Acervo Estadão
Todo
mundo foi ver a Gemini V no Passeio Público (até a enchente esteve
lá, uma noite). Todo mundo, menos ele. Não que se colocasse fora da
era espacial ou abominasse os Estados Unidos. Deixou de ir por
preguiça. É daqueles que, para participarem de um acontecimento
histórico, exigem que o acontecimento se verifique no bairro, de
preferência na rua onde moram. Em horário cômodo.
Mas
chegou o neto de longes plagas, doido de vontade de ver a cápsula, e
sem condições para ir sozinho ao centro da cidade. Pediu ao avô
que o levasse.
— Nunca!
Está um calor de lascar.
— A
gente toma uns sorvetes e vai em frente.
— Sem
um pingo d’água em casa!
— E
daí? Pra ver a Gemini não precisa de água. Astronauta é que
precisa de muita, pra não desidratar no espaço.
— Amanhã
nós vamos, menino.
— Amanhã
a cápsula sobe pra Petrópolis e não volta mais ao Rio. Você
parece que não lê jornal!
Impossível
resistir. Os dois se mandaram para o centro. Lá estava, no jardim,
convidativa como um circo, a barraca de plástico encerrando a
supermáquina. “Que chateação!” — pensou o velho. O neto
pensava exatamente o contrário. Tanto que, mal avistou a barraca,
acelerou o passo, deixando o avô à distância. Em disparada entrou
no recinto.
A
progressão nas duas escadinhas laterais era lenta, porque os
visitantes queriam ver bem a cápsula; alguns o faziam com ar
entendido, de quem já entrou em órbita e é íntimo do Schirra e do
Cooper. Certamente, para o garoto o ideal seria que todos fossem
embora e ele tomasse posse da cápsula. Mal subiu o primeiro degrau,
estendeu as mãos para o plástico da cobertura, alisou-o como quem
faz carícia. Depois, os dedos passaram ao revestimento metálico.
Apalpava a matéria com força, para testá-la, talvez para
comunicar-lhe toda a sua emoção.
— Olhe
para dentro, repare no painel, nos assentos do piloto e do copiloto —
sugeriu o visitante de trás, vendo que o garoto não desatava.
Mas
ele não tinha tanto olhos de ver quanto mãos de pegar. O tato
procurava convencer-se da materialidade da cápsula, esgotar a
percepção; depois, a vista que entrasse com seu jogo. Meteu a unha
no casco de titânio, querendo tirar uma lasquinha que fosse.
Conseguiu uns fiapos, recolhidos imediatamente ao bolso da camisa.
Depois arranhou a bandeira norte-americana pintada na fuselagem. Sem
a menor intenção de desacato: para conseguir uns grânulos de tinta
vermelha das listras, que serviriam, com os fiapos, de eterna
recordação e comprovação do encontro, se os colegas duvidassem.
Pressionado
pela fila, teve de descer do outro lado, mas avisou: “Vou subir
muitas vezes”. E subiu e desceu tantas vezes, contornando a
barraca, que mais parecia a própria cápsula, dando voltas à Terra.
Já agora, eram os olhos que desfrutavam a viagem. Tiravam fotos
retinianas de cada instrumento, cada botão, cada partícula
prestigiosa do prestigioso conjunto.
E
não descansou. Concluído o voo orbital, aterrissou junto ao
funcionário incumbido de dar explicações a quem quisesse. Crivou-o
de perguntas, discutiu pontos técnicos da próxima alunissagem. A
certa altura, o funcionário coçou a cabeça:
— Isso
eu não sei informar, me faltam dados… Desculpe.
Ao
voltarem para casa, confidenciou ao avô:
— Soprei
em cima do vidro, para deixar o meu hálito. E risquei como pude
minhas iniciais.
De
sorte que o avô regressou sem ter visto propriamente a Gemini V, mas
ainda a está observando, perfeita, em pleno voo, na fisionomia grave
do garoto, que ainda não regressou do cosmo.
Carlos
Drummond de Andrade, in 70 historinhas
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