domingo, 12 de agosto de 2018

Uma maré de azar

Era um velho que pescava sozinho num esquife na Corrente do Golfo, e saíra havia já por oitenta e quatro dias sem apanhar um peixe. Nos primeiros quarenta dias um rapaz fora com ele.
Mas, após quarenta dias sem um peixe, os pais do rapaz disseram a este que o velho estava definitivamente e declaradamente salao, o que é a pior forma de azar, e o rapaz fora por ordem deles para outro barco que na primeira semana logo apanhou três belos peixes. Fazia tristeza ao rapaz ver todos os dias o velho voltar com o esquife vazio e sempre descia a ajudá-lo a trazer as linhas arrumadas ou o croque e o arpão e a vela enrolada no mastro. A vela estava remendada com quatro velhos sacos de farinha e, assim ferrada, parecia o estandarte da perpétua derrota.
O velho era magro e seco, com profundas rugas na parte de trás do pescoço. As manchas castanhas do benigno cancro da pele que o sol provoca ao refletir-se no mar dos trópicos viam-se-lhe no rosto. As manchas iam pelos lados da cara abaixo, e as mãos dele tinham as cicatrizes profundamente sulcadas, que o manejo das linhas com peixe graúdo dá. Mas nenhuma destas cicatrizes era recente. Eram antigas como erosões num deserto sem peixes.
Tudo nele e dele era velho, menos os olhos, que eram da cor do mar e alegres e não vencidos.
- Santiago - disse o rapaz, ao virem da praia para onde fora alado o esquife. - Posso tornar a ir contigo. Já ganhamos algum dinheiro.
O velho ensinara o rapaz a pescar e o rapaz gostava muito dele.
- Não - respondeu o velho. - Andas num barco de sorte. Fica com eles.
- Mas lembra-te de como saíste oitenta e sete dias sem peixe, e depois apanhaste só grandes, todos os dias, três semanas a fio.
- Lembro - disse o velho. - Bem sei que não me deixaste por duvidares.
- Foi o papai quem me mandou. Sou um rapaz pequeno e tenho de lhe obedecer.
- Bem sei - disse o velho. - É assim mesmo.
- Não têm grande fé...
- Pois não. Mas nós temos. Então não temos?
- Temos - respondeu o rapaz. - Posso pagar-te uma cerveja no Terraço e depois levamos a tralha para casa?
- E porque não? - disse o velho. - Entre pescadores!
Sentaram-se no Terraço e muitos dos pescadores fizeram troça do velho e ele não se zangou. Outros, dos pescadores mais velhos, olhavam-no e ficavam tristes. Mas não o mostravam e falavam atenciosamente da corrente e dos fundos a que haviam deitado as linhas e do bom tempo firme e do que tinham visto. Os pescadores de sorte nesse dia já lá estavam e tinham aberto os grandes peixes e tinham-nos trazido ao comprido em duas tábuas, com dois homens atrapalhados à ponta de cada tábua, até à pescaria onde esperariam pelo caminhão frigorífico que os levaria ao mercado de Havana. Os que haviam pescado tubarões tinham-nos levado à fábrica, do outro lado da enseada, onde eram içados com um cadernal, e lhes eram extraídos os fígados, cortadas as barbatanas, esfoladas as peles, e a carne feita em postas para salgar.
Quando o vento era leste um cheiro da fábrica atravessava o porto; naquele dia, porém, só a vaga memória de um odor vinha, porque o vento rondara ao norte e caíra, e no Terraço cheio de sol era agradável estar.
- Santiago - disse o rapaz.
- Que é? - perguntou o velho, segurando o copo e a pensar nos tempos de outrora.
- Posso ir arranjar-te umas sardinhas para amanhã?
- Não. Vai jogar o “baseball”. Ainda sei remar e o Rogélio atira a rede.
- Gostava de ir. Se não posso pescar contigo, gostava de ser útil de qualquer maneira.
- Pagaste-me uma cerveja - Disse o velho. - Já és um homem.
- Que idade tinha eu quando me levaste a primeira vez num barco?
- Cinco, e ias quase morrendo, quando puxei o peixe ainda muito forte e por pouco ele fazia o barco em pedaços. Não te lembras?
- Lembro-me da cauda a dar e a bater e do banco a partir-se e do barulho da pancada. Lembro-me de me teres atirado para vante, onde estavam as linhas molhadas, e de sentir o barco tremer todo, e do barulho de tu à pancada a ele como quem deita uma árvore abaixo, e do cheiro doce do sangue por cima de mim.
- Tu lembras-te disso, ou fui eu quem te contou?
- Lembro-me de tudo, desde que primeiro saímos juntos.
O velho olhou para ele, com os seus olhos amoráveis, confiantes, ardidos do sol.
- Se fosses meu filho, levava-te e tentava a sorte - disse. - Mas és filho do teu pai e da tua mãe, e andas num barco dos bons.
- E se eu fosse às sardinhas? E sei onde arranjar quatro iscas.
- Sobraram-me de hoje as minhas. E deixei-as em sal na caixa.
- Deixa-me arranjar quatro frescas.
- Uma - disse o velho.
A esperança e a confiança nunca o haviam abandonado. Mas reverdeciam agora, como ao sopro da brisa.
- Duas - Disse o rapaz.
- Duas - anuiu o velho.
- Não as roubaste?
- Era capaz. Mas comprei estas.
- Obrigado - disse o velho. Era demasiado simples ele, para ficar-se a pensar ao atingir a humildade. Mas sabia que atingira e sabia que não era desgraça e não acarretava perda do amor-próprio autêntico.
- Amanhã, com esta corrente, vai ser um bom dia - disse.
- Para onde vais? - perguntou o rapaz.
- Muito para o largo, para vir quando levantar o vento. Quero sair antes de ser dia.
- Hei-de ver se o levo bem para o largo - disse o rapaz.
- E, se pescas alguma coisa das grandes, podemos ir ajudar-te.
- Ele não gosta de trabalhar muito ao largo.
- Pois não - reconheceu o rapaz. - Mas hei-de ver o que ele não pode ver, assim um pássaro à pesca, e levá-lo aos delfins.
- Vê assim tão mal?
- Está quase cego.
- É estranho - disse o velho. - Ele nunca andou às tartarugas. E é o que dá cabo dos olhos.
- Mas tu andaste anos e anos às tartarugas na Costa do Mosquito, e vês bem.
- É que eu sou um velho estranho.
- Mas ainda tens força para um peixe dos grandes a valer.
- Acho que sim. E há muitas manhas.
- Vamos levar a tralha para casa - disse o rapaz.
- Para eu arranjar a rede e ir pelas sardinhas.
Pegaram na palamenta do barco. O velho levava o mastro ao ombro, e o rapaz a caixa de madeira com as linhas escuras, ásperas e enroladas, o croque e o arpão na sua bainha. A caixa das iscas estava sob o banco da popa, com o cacete que servia para dominar o peixe graúdo quando era trazido até ao casco. Ninguém roubaria nada ao velho, mas era melhor levar a vela e as linhas grossas para casa, pois que a orvalhada é má para elas, e, embora o velho estivesse certo de que ninguém do sítio lhe roubaria nada, achava que um croque e um arpão são tentações inúteis a deixar num barco.
Ernest Hemingway, in O Velho e o Mar

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