Sempre os sonhos a
me rondar. Falo deles porque sonhos pulsam no interior da escrita. A
literatura não passa de uma maneira discreta de sonhar. Um sonho que
se expõe e se camufla na letra.
Sonho que sou
ministro de uma rainha. Estou sempre a ler contos de fadas para minha
velha mãe – rainhas, reis, fadas e bruxas circulam em nossas
conversas. Pois sonho que sou ministro de um reino. A rainha me
convoca. Quer construir um monumento que simbolize seu reinado.
Deseja copiar a forma de certa pedra primordial, perdida para sempre,
que deu origem ao planeta Terra.
Minha missão (como
nos contos de fadas) é impossível: devo reencontrar a pedra
perdida. Mas em sonhos, como na literatura, podemos tudo. Recupero,
então, a pedra original e a entrego a Sua Majestade. É uma pedra
branca, que não só cintila, mas pulsa. Origem não só do planeta,
mas da existência humana.
Já relatei aqui a
história de um minúsculo meteorito, do tamanho de uma castanha,
que, um dia, o escritor Marco Lucchesi me enviou de presente. Era tão
pequeno que eu, sempre distraído, o perdi. Recentemente perdi um
autógrafo de Luchino Visconti que outro amigo, Fernando Monteiro, me
enviou do Recife. Vi aquele pedaço de papel com alguns rabiscos
anexado a um DVD de Morte em Veneza que ele me mandava de presente.
Detive-me no filme – e joguei, sem pensar, o autógrafo fora!
Muitas coisas
escorrem pelas bordas de nossa visão. O mais importante (se é que
ele existe) sempre nos escapa. É nessa zona de sombras que a
literatura se constitui. Seu objeto é, justamente, o que somos
incapazes de ver. Por isso a literatura se parece com a pedra
primordial que entrego à rainha. De posse dela, roçamos o
impossível.
Sonhos, objetos
arcaicos, coisas perdidas. Essas ideias me vêm, em turbilhão,
enquanto leio Ficções de um gabinete ocidental (Civilização
Brasileira), coletânea de ensaios de Marco Lucchesi. Como não me
lembrar do meteorito que Lucchesi me deu e eu perdi? Como não evocar
o autógrafo perdido de Visconti? Como não pensar na pedra original
que, em meu sonho, reencontro e entrego à rainha?
Lucchesi é um
ensaísta que escreve como poeta. Visita, como um arqueólogo,
aqueles sedimentos onde o improvável se esconde. A cada ensaio, uma
cortina se rasga. Uma luz, súbita, nos cega. Detenho-me, assombrado,
em um comovente ensaio sobre a relação entre a poesia e a
matemática.
Chama-se “A
espiral e o sonho dos meninos” e começa na página 189. Todo o
livro está ali. Quando pensamos em matemática, pensamos
imediatamente em números, operações, equações, soluções.
Pensamos no mundo duro e claro da exatidão. É essa a matemática
que ensinam nas escolas. Aquela que “pode ser usada”, que “é
útil” porque possibilita os negócios, os cálculos de engenharia
e as projeções técnicas.
Mostra Lucchesi que
essa matemática do prático é só a casca da matemática. Lucchesi
faz da matemática um instrumento de acesso não à exatidão ou à
perfeição, mas à poesia, que é sempre irregular e imperfeita.
Alguém me lembra, a propósito, de uma ideia de Valéry: não se
termina um poema; se abandona.
Lucchesi transforma
a matemática em uma via para o infinito. Parte de um verso de René
Char, que fala dos “infinitos rostos dos seres vivos”. Sim: a
matemática não tem ponto de chegada – não tem “solução”. O
infinito é seu destino, é seu objeto. Por isso, recorda Lucchesi,
desde menino os números lhe causavam desconforto. “Não me sentia
inclinado a trabalhar numa bateria de cálculos e trincheiras”,
diz. Eu, que também fui péssimo aluno de matemática, o compreendo.
Mas Lucchesi avança
onde jamais ousei pisar. Associamos a matemática, sempre, à
habilidade; ele prefere ligá-la aos mundos circulares e às imagens
incompreensíveis. Adolescente, durante as aulas desprezava os
exercícios de cálculo e se detinha na beleza dos “números
imaginários”, que Leibniz um dia definiu como “anfíbios entre o
ser e o não ser”. Nem aqui nem ali. Ou melhor: aqui e ali também.
“A matemática me
fazia sonhar”, Lucchesi diz. Ainda faz. Enquanto a matemática das
escolas busca a ausência de erros, o jovem Lucchesi se aferrava às
formas imperfeitas, em que a lógica naufraga. “Passava horas,
dias, semanas, como um frágil arqueiro, lançando flechas de fogo
para alvos impossíveis”, diz. Não se acerta o impossível. Ama-se
o impossível.
Lucchesi não
aceita que a matemática seja um pretexto para roubar dos meninos e
das meninas o direito de sonharem. Em uma bela entrevista com o
matemático Ubiratan D’Ambrosio, descobre que, sem a fantasia,
ninguém pode ser um bom matemático. Em outras palavras: o bom
matemático precisa ser, também, um poeta. Diz D’Ambrosio: “Ambas,
boa poesia e boa matemática, dependem da fantasia”. Sem o sonho, a
matemática murcha.
Na conversa com
Lucchesi, D’Ambrosio nos lembra que, assim como um matemático
habilidoso pode, apesar disso, não ser bom matemático, também um
poeta que manipula bem as palavras pode, apesar disso, não ser um
bom poeta. Relembra, a propósito, um trecho de Franny e Zooey,
o romance de J.D. Salinger: “Quero dizer que eles não são
realmente poetas. Eles são apenas pessoas que escrevem poemas, que
são publicados e estão em antologias, mas eles não são poetas”.
A matemática, também ela, é outra coisa.
Aluno medíocre de
matemática, meu pai me pagou, durante anos, lições particulares.
Meu professor era um homem solene e frio, que não sabia sonhar. Suas
lições me asfixiavam. Para me proteger, levava em minha pasta um
livro de Bandeira. Nos intervalos, eu me trancava no banheiro para
ler alguns versos.
Um dia, o professor
descobriu meu segredo. Advertiu-me: “Não traga mais esse livro,
poemas não servem para nada”. Temos o direito de defender o que é
nosso, independente do uso que façamos do que temos, Lucchesi nos
faz ver. Ele recorda, a propósito, de “Visão do último trem
subindo ao céu”, o poema de Joaquim Cardozo. Está escrito: “O
trem se desprende da história,/ da história torpe dos homens”.
Sobe para o céu, agora sem roteiro e sem destino. Já não serve
para nada. Nada? Ele nos faz sonhar.
José Castello,
in Sábados inquietos
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