quarta-feira, 22 de agosto de 2018

Difícil de explicar

Vamos com calma — disse — muita calma! Então você não sabe dançar? Dança nenhuma? Nem mesmo o one step. E não obstante andou aí dizendo que teve de lutar na vida!
Esta é uma mentira da grossa, seu moço, e não fica bem fazer isso na sua idade. Como pode dizer que a vida lhe deu muito trabalho se você nem sequer sabe dançar?
É que nunca aprendi. Não pude. Ela sorriu.
Mas aprendeu a escrever e a ler, não é verdade? E a somar, aprendeu latim e francês possivelmente e muitas outras coisas semelhantes? Aposto que passou uns dez ou doze anos na escola e estudou nela o possível, e talvez tenha ate um título de doutor e conhece o chinês ou o espanhol. Ou não? Muito bem. Mas a verdade é que nunca dedicou um pouco de tempo nem dinheiro para aprender a dançar, hein?
Foram meus pais — justifiquei-me. — Fizeram-me aprender o latim e o grego e todas essas coisas. Mas não me ensinaram a dançar, não era uso entre nós; eles próprios não sabiam dançar. Olhou-me friamente, com muito desprezo, e em seu rosto voltou a brilhar algo que me recordou a infância.
Agora põe a culpa nos pais! Será que perguntou a eles também se podia vir hoje ao Águia Negra? Perguntou? Está me dizendo que morreram há muito tempo? Ah! Talvez você não tenha aprendido a dançar em sua juventude por ser uma criança obediente. Embora eu não creia que você tenha sido uma criança modelo. Mas, e depois, que foi que você fez durante tantos anos?
Ah! — confessei — nem eu mesmo sei. Estudei, aprendi música, li, escrevi livros, viajei...
Engraçada a ideia que você tem da vida! Sempre metido em coisas difíceis e complicadas, e não aprendeu as fáceis? Não teve tempo para isso? Tinha outras coisas para fazer. Bem, graças a Deus, não sou sua mãe. Mas agir assim, como se você já tivesse experimentado toda a vida e nela não encontrasse nada de interessante, isso não; isso não pode ser.
Não ralhe comigo! — supliquei. —Já sei que estou louco.
Espere aí, não me venha com esta história. O senhor não está louco, professor; até me parece que de louco não tem nada. É apenas racional de uma maneira estúpida, eis o que acho; exatamente como um professor. Vamos, coma outro sanduíche! Depois você me conta. Pediu para mim outro sanduíche, deitou nele um pouco de sal, untou-o com mostarda, cortou um pedaço para si e me animou a que comesse a outra metade. Comi. Teria feito tudo o que me pedisse; tudo, menos dançar. Fazia-me muito em estar-lhe obedecendo, sentar-me junto a alguém que pergunta, que ordena, que nos desnuda. Se o professor e sua senhora tivessem feito o mesmo comigo algumas horas antes, ter-me-iam evitado muitas coisas. Mas, não, assim fora melhor; do contrário teria perdido muito mais!
E como é que você se chama? — perguntou de repente.
Harry.
Harry? Que nome mais infantil! E continua sendo uma criança, Harry, apesar das manchas grisalhas do cabelo. É uma criança e precisa de alguém que vele um pouco por você. Não vou falar mais nada sobre a dança. Mas como você está mal penteado! não tem nem mulher, nem amante?
Não tenho mulher, estamos separados. Tenho uma amante, mas não mora aqui. Só a vejo de quando em quando, não nos entendemos muito bem.
Ela resmungou.
Você me parece uma pessoa muito difícil, pois ninguém pára ao seu lado. Mas que lhe aconteceu hoje de especial para fazê-lo correr assim tão desesperado? Brigou com alguém? Perdeu no jogo?
Aquilo era difícil de explicar.
Hermann Hesse, in O Lobo da Estepe

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