quarta-feira, 22 de agosto de 2018

Circo do miudinho (trecho)

Sai-se para o voo o pesouro, como um botão de uma casa. E ab abrupto: abre-se de asas sob estojos, não cabe nas bainhas. Primeiro, porém ex-surge — irrompe de algum buraco do fundo. Onde aonde que anda, curvo sempre a carregar-se, e a bulir; telúrico. Sendo um dos que rolam bola, dos chamados bosteiros. E vai às flores! Sabe-as só dos colibris e borboletas? Quando nas pétalas, choca seu vulto labrusco, cujo modo bomboso, essa cúbica figura, a presença abalroante, de cônego intruso. Seja que às vezes uma corola o expulsa: dá para trás, num jacto de glóbulos e grudes; com sua culpa, de furto, feiura, luto, lambuzabilidade e estupro. Contudo, cura de repetir: e começa sempre obscenamente a voar. Também muito já se disse que, pela compleição do corpo, cunho, peso, proporções e forma, faltam-lhe condições de ser aéreo; e em cômputos rigorosos a ciência já demonstrou que ele não pode absolutamente voar. Só mesmo por incompetência e ignorância.
Isto é, às vezes acontece que um deles descubra tal matemática impossibilidade, e, cônscio então da própria inaptidão, não consegue se subir nem reles palmo: ao alto e ar não se atraverá mais, jamais.

Digo de um, que caiu do castanheiro, na rue des Graviers, a 27 de abril de 1949, quando o chão se apanhava de flores rosa e neve. Debatia-se. De suas costas deiscentes — qual pinha cozida ou casco de boi — em vão descerrava os élitros cor de avelã, a cabecinha oscilante dentro dos duros ombros, e mexia as patas meticulosamente peludas, rogando com as antenas de plumosos extremos. Ora descambou, dando a ver o preto tórax, a barriga em hirsuto. Nada podia.
Não que se visse mutilado, nem contuso. Nada falou, nenhum resmungo; a não ser o que por desventura se zumbiu, de si consigo. Súbito ele havia-se despertado, sentira-se nu, a curto, suspeitara-se em erro de origem. Decerto, não pelo raciocínio; que são cálculos e números, para um bagalhão de besouro? Mas, assim qualquer coisa como que revelada e intuída, almamente, simples pingo de consciência, o ferir de um ponto de espírito. Soube-se ou notou que não passava de um grutesco corcunda, cascudo casca-grossa, rude muito mecânico, no denso e obtuso calibanato — para quem voar seria um descomedimento e florejar um usurpo.
Compôs-se, a custo, penitente, recusando-se às prematuras tenras asas baixo à bem fechada cobertura. E andou, bom pedaço, se deixando das flores, conforme conduz seu bauzinho preto, sob tanta escaravelhice, que impressiona. Caminhava se abraçando com a terra — pisada, cuspida e venerável.
Guimarães Rosa, in Ave, palavra

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