terça-feira, 24 de julho de 2018

Saudade de Karina

Ele ainda ficou por aqui um pedacinho, tentando entender detalhe por detalhe, com o propósito de aprender tudo bem aprendido pra poder repetir direito depois, em melhor dizendo, antes.
De uma hora pra outra disse que já estava pronto pra voltar, e se disse que estava era porque estava mesmo.
Ou então era saudade de Karina. Não fazia nem um dia que Antônio não a via e no entanto parecia que fazia um quarto de século, mais ou menos.
Na hora da despedida o povo todo lhe desejou, “boa sorte, Antônio”, e arrematou com um pedido: “agora volta lá e conta tudo pra gente”.
Foi então que lhe ocorreu, justamente nessa hora, que enquanto Karina devia estar lá no passado, esperando por notícia, sem saber como e nem onde ele estaria por agora, ele se encontrava aqui com um problema idêntico. Como é que não tinha pensado nisso antes, minha nossa, o que teria acontecido a Karina nesses 25 anos, seis meses e 17 dias?
Se tudo tinha mudado tanto nesse tempo todo, perigava ela ter mudado também, e aí então como é que seria?
E se ela tivesse morrido?
E se estivesse doente?
E se estivesse com outro?
E se havia uma outra Karina agora, será que havia de haver um outro Antônio?
Eita dúvida desgraçada se queria saber disso ou não queria.
Pela segunda vez então Antônio sentiu um medo medonho, mas seu coração disse pra sua cabeça, vá, e sua cabeça disse pra sua coragem, vou, e sua coragem respondeu, vou nada, mas seus olhos não ouviram e resolveram que era a Karina de antes que eles queriam ver, não a de agora, se é que essa existe, e, se essa existe, ele preferia não saber como ela era.

Foi nesse instante exatamente que tudo começou a voltar pra trás novamente, e dessa vez Antônio entendeu tudo, pois havia deixado de ser marinheiro de primeira viagem.
Não era o tempo que estava passando danado por ele, era ele que estava danado passando pelo tempo, percorrendo o mesmo caminho que tinha percorrido antes, só que em sentido inverso. Tentou rezar a Ave-Maria, mas não conseguia chegar no Ave-Maria, em parte porque estava doidinho das ideias, em parte porque não estava acostumado a rezar de trás pra frente, e quando o tempo parou de passar de repente por ele, num solavanco, em melhor dizendo, quando ele, num solavanco, parou de passar pelo tempo de repente, deu-se a doidice.
Do jeito que vinha embalado, Antônio parou de vez, assim, sem nenhum aviso, estremecendo todas as ideias do juízo, e o exato momento de sua volta no tempo coincidiu com o exato momento de sua ida.
Tudo estava no mesmíssimo ponto que ele tinha deixado, meio-dia em ponto, e só restava dizer Ave-Maria, e foi isso mesmo que ele disse.
Cinco, quatro, três, dois, um, Ave-Maria, e Antônio ainda ouviu seu coração dizer pra sua cabeça, vá, e sua cabeça dizer pra sua coragem, vou, e sua coragem responder, vou nada, mas ele não ouviu, e quando as setecentas lâminas da máquina da morte botaram pra funcionar, todas elas ao mesmo tempo, na maior ligeireza, o mundo todo que estava esperando pra ver tripa de Antônio, sangue de Antônio, osso de Antônio virar pó, não viu foi coisa nenhuma.
Adriana Falcão, in A máquina

Nenhum comentário:

Postar um comentário