Ele ainda ficou por
aqui um pedacinho, tentando entender detalhe por detalhe, com o
propósito de aprender tudo bem aprendido pra poder repetir direito
depois, em melhor dizendo, antes.
De uma hora pra
outra disse que já estava pronto pra voltar, e se disse que estava
era porque estava mesmo.
Ou então era
saudade de Karina. Não fazia nem um dia que Antônio não a via e no
entanto parecia que fazia um quarto de século, mais ou menos.
Na hora da
despedida o povo todo lhe desejou, “boa sorte, Antônio”, e
arrematou com um pedido: “agora volta lá e conta tudo pra gente”.
Foi então que lhe
ocorreu, justamente nessa hora, que enquanto Karina devia estar lá
no passado, esperando por notícia, sem saber como e nem onde ele
estaria por agora, ele se encontrava aqui com um problema idêntico.
Como é que não tinha pensado nisso antes, minha nossa, o que teria
acontecido a Karina nesses 25 anos, seis meses e 17 dias?
Se tudo tinha
mudado tanto nesse tempo todo, perigava ela ter mudado também, e aí
então como é que seria?
E se ela tivesse
morrido?
E se estivesse
doente?
E se estivesse com
outro?
E se havia uma
outra Karina agora, será que havia de haver um outro Antônio?
Eita dúvida
desgraçada se queria saber disso ou não queria.
Pela segunda vez
então Antônio sentiu um medo medonho, mas seu coração disse pra
sua cabeça, vá, e sua cabeça disse pra sua coragem, vou, e sua
coragem respondeu, vou nada, mas seus olhos não ouviram e resolveram
que era a Karina de antes que eles queriam ver, não a de agora, se é
que essa existe, e, se essa existe, ele preferia não saber como ela
era.
Foi nesse instante
exatamente que tudo começou a voltar pra trás novamente, e dessa
vez Antônio entendeu tudo, pois havia deixado de ser marinheiro de
primeira viagem.
Não era o tempo
que estava passando danado por ele, era ele que estava danado
passando pelo tempo, percorrendo o mesmo caminho que tinha percorrido
antes, só que em sentido inverso. Tentou rezar a Ave-Maria, mas não
conseguia chegar no Ave-Maria, em parte porque estava doidinho das
ideias, em parte porque não estava acostumado a rezar de trás pra
frente, e quando o tempo parou de passar de repente por ele, num
solavanco, em melhor dizendo, quando ele, num solavanco, parou de
passar pelo tempo de repente, deu-se a doidice.
Do jeito que vinha
embalado, Antônio parou de vez, assim, sem nenhum aviso,
estremecendo todas as ideias do juízo, e o exato momento de sua
volta no tempo coincidiu com o exato momento de sua ida.
Tudo estava no
mesmíssimo ponto que ele tinha deixado, meio-dia em ponto, e só
restava dizer Ave-Maria, e foi isso mesmo que ele disse.
Cinco, quatro,
três, dois, um, Ave-Maria, e Antônio ainda ouviu seu coração
dizer pra sua cabeça, vá, e sua cabeça dizer pra sua coragem, vou,
e sua coragem responder, vou nada, mas ele não ouviu, e quando as
setecentas lâminas da máquina da morte botaram pra funcionar, todas
elas ao mesmo tempo, na maior ligeireza, o mundo todo que estava
esperando pra ver tripa de Antônio, sangue de Antônio, osso de
Antônio virar pó, não viu foi coisa nenhuma.
Adriana Falcão,
in A máquina
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