Que se passa com
este garoto, que não quer dormir? Acorda cedo, vai à praia, almoça
um boi, janta outro, pula feito macaco, está exausto até o sabugo
da alma; entretanto, quando o sol se recolhe, ele não faz o mesmo.
Pretenderá abolir a noite, prosseguindo infindavelmente nos jogos e
experiências do dia claro.
Livros
especializados responderiam à pergunta. Mas um avô que se preza
jamais recorreria à ciência dos outros para iluminar sua
ignorância. A resposta deve vir da compreensão amorosa, forrada de
paciência, que costuma falecer aos avós mais aperfeiçoados.
Não, o guri não
quer saltar sempre, como brinquedo a que se desse corda infinita.
Seus olhos já não têm aquele foguinho azul-claro que crepitava a
cada hipótese de prazer, durante o dia. Estão baços e estreitos,
como convém à viagem do sono. E se o menino não se dispõe a
empreendê-la, é porque sabe que irá sozinho, que todos nós
dormimos abandonados e ermos, que o mundo murcha em nosso redor, e
perdemos todo contato com a corrente da vida. Se a casa inteira fosse
dormir, bem seria um mergulho geral, e os sonos se sentiriam
solidários; mas é cruel ir para a cama, e saber que lá embaixo a
vida está acontecendo em volta à mesa do jantar, e o riso
imprudente dos adultos soa como um odioso privilégio. Então se
desenrola o entreato da escada.
A escada marca a
separação de dois mundos: o mundo propriamente dito e a solidão. É
longa, e cada degrau que se sobe representa um passo para o exílio.
Deve-se subi-la devagarinho, e descê-la em ritmo de carga de
cavalaria. Infelizmente, é hora de subir. As autoridades, sob
compromisso de recolhimento pacífico, prometeram um serão mais
longo, mas tudo acaba, e temos de enfrentar a noite e seus espaços
vazios e desolados.
— Anda mais
depressa, menino.
— Um momentito.
Tenho ganas de coçar-me as rodijas.
Senta-se e começa
a coçar-se, na calma. Levanta-se e olha para baixo, saudoso, como do
alto de um clipper.
— Mamãe…
— Que é?
— Amanhã bos me
regalás uma cosita que eu quero mucho?
— Que coisa,
filhinho?
— Todavia não
sé. Es um negocio mui lindo, focê sabe?
— Bem, amanhã
você lembra e me diz. Agora vai dormirzinho, vai.
— Quero água.
— Mas, meu bem,
agorinha mesmo você bebeu um copo d’água!
— Quero más.
— Deita, e mamãe
te traz água.
— Sim, voi
acostarme. E me contás um conto de Ruãozinho e Maria?
Vários contos são
contados, já na cama, e o menino parece vencido. A família janta,
satisfeita. Ouve-se um lamento débil:
— Mamãe…
— Que é?
— Me olvidê de
cepijar os dentes.
— É engano,
filhinho, você escovou.
— Escovê mal.
— Vai dormir,
menino.
Ruído na escada.
Então, ele não estava falando da cama?
— Volte para o
quarto e fique quietinho.
Faz que volta, sobe
um degrau. Nova pausa, e recomeçam os apelos suaves e melancólicos
de comunhão. Precisa contar o tombo que o Valdemar levou hoje na
escola. Recorda-se de que a porta do “comedor” em Buenos Aires
não ficou fechada aquele dia, e entrou um imenso galo cor de
escuridão. Precisa atender a uma necessidade urgente; não podem
ajudá-lo a acender a luz, tão alta? Quando baixarão los marcianos,
que viajam em aviões-foguetes?
As pessoas perdem a
paciência, divertem-se, ameaçam, imploram-lhe que durma só um
pouquinho. Imagem de vigília, mãos no rosto, bocejante e
perseverante, sentado no alto da escada, seu pequenino corpo
escondido no pijama parece aguardar que um cataclismo subverta a face
da terra, e as pessoas crescidas voltem a ser crianças para
entenderem a tristura de adormecer.
Carlos Drummond
de Andrade, in 70 historinhas
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