Quer que eu lhe
fale de mim, quer saber de um velho asilado que nem sequer é capaz
de se mexer da cama? Sobre mim sou o menos indicado para falar. E
sabe porquê? Porque estranhas névoas me afastaram de mim. E agora,
que estou no final de mim, não recordo ter nunca vivido.
Estou deitado neste
mesmo leito há cinco anos. As paredes em volta parecem já forrar a
minha inteira alma. Já nem distingo corpo do colchão. Ambos têm o
mesmo cheiro, a mesma cor: o cheiro e cor da morte. Morrer, para mim,
sempre foi o grande acontecimento, a surpresa súbita. Afinal, não
me coube tal destino. Vou falecendo nesta grande mentira que é a
imobilidade.
Também eu amei uma
mulher. Foi há tempo distante. Nessa altura, eu receava o amor. Não
sei se temia a palavra ou o sentimento. Se o sentimento me parecia
insuficiente, a palavra soava a demasiado. Eu a desejava, sim, ela
inteira, sexo e anjo, menina e mulher. Mas tudo isso foi noutro
tempo, ela era ainda de tenrinha idade.
Este lugar é a
pior das condenações. Já nem as minhas lembranças me acompanham.
Quando eu chamo por elas me ocorrem pedaços rasgados, cacos
desencontrados. Eu quero a paz de pertencer a um só lugar, a
tranquilidade de não dividir memórias. Ser todo de uma vida. E
assim ter a certeza que morro de uma só única vez. Mas não: mesmo
para morrer sofro de incompetências. Eu deveria ser generoso a ponto
de me suicidar. Sem chamar morte nem violentar o tempo. Simplesmente
deixarmos a alma escapar por uma fresta.
Ainda há dias um
desses rasgões me ocorreu por dentro. É que me surgiu, mais forte
que nunca, esse pressentimento de que alguém me viria buscar. Fiquei
a noite às claras, meus ouvidos esgravatando no vão escuro. E nada,
outra vez nada. Quando penso nisso um mal-estar me atravessa. Sinto
frio mas sei que estamos no pico do Verão. Tremuras e arrepios me
sacodem. Me recordo da doença que me pegou mal cheguei a este
continente.
África: comecei a
vê-la através da febre. Foi há muitos anos, num hospital da
pequena vila, mal eu tinha chegado. Eu era já um funcionário de
carreira, homem feito e preenchido. Estava preparado para os ossos do
ofício mas não estava habilitado às intempéries do clima. Os
acessos da malária me sacudiam na cama do hospital apenas uma semana
após ter desembarcado. As tremuras me faziam estranho efeito: eu me
separava de mim como duas placas que se descolam à força de serem
abanadas.
Em minha cabeça,
se formavam duas memórias. Uma, mais antiga, se passeava em obscura
zona, olhando os mortos, suas faces frias. A outra parte era
nascente, reluzcente, em estreia de mim. Graças à mais antiga das
doenças, em dia que não sei precisar, tremendo de suores, eu dava à
luz um outro ser, nascido de mim.
Fiquei ali, na
enfermaria penumbrosa, intermináveis dias. Uma estranha tosse me
sufocava. Da janela me chegavam os brilhos da vida, os cantos dos
infinitos pássaros. Estar doente num lugar tão cheio de vida me
doía mais que a própria doença.
Foi então que eu
vi a moça. Branca era a bata em contraste com a pele escura: aquela
visão me despertava apetites no olhar. Ela se chamava Custódia. Era
esta mesma Custódia que hoje está conosco. Na altura, ela não era
mais que uma menina, recém— saída da escola. Eu não podia
adivinhar que essa mulher tão jovem e tão bela me fosse acompanhar
até ao final dos meus dias. Foi a minha enfermeira naqueles penosos
dias. A primeira mulher negra que me tocava era uma criatura meiga,
seus braços estendiam uma ponte que vencia os mais escuros abismos.
Todas as tardes ela
vinha pelo corredor, os botões do uniforme desapertados, não era a
roupa que se desabotoava, era a mulher que se entreabria. Ou será
que por não ver mulher há tanto tempo eu perdera critério e até
uma negra me porventurava? Me admirava a secura daquela pele, 0 gesto
cheio de sossegos, educado para maternidades. Enquanto rodava pelo
meu leito eu tocava em seu corpo. Nunca acariciara tais carnes:
polposas mas duras, sem réstia de nenhum excesso.
Os dias passavam,
as maleitas se sucediam. Até que, numa tarde, me assaltou um vazio
como se não houvesse mundo. Ali estava eu, na despedida de ninguém.
Olhei a janela: um pássaro, pousado no parapeito, recortava o
poente. Foi nesse pôr do Sol que Custódia, a enfermeira, se
aproximou. Senti seus passos, eram passadas delicadas, de quem sabe
do chão por andar sempre descalço.
— Eu tenho um
remédio, disse Custódia. É um medicamento que usamos na nossa
raça. O Senhor Fernandes quer ser tratado dessa maneira?
— Quero.
— Então, hoje de
noite lhe venho buscar.
E saiu, se apagando
na penumbra do corredor. Como em caixilho de sombra a sua figura se
afastava, imóvel como um retrato. Na janela, o pássaro deixou de se
poder ver. Adormeci, doído das costas, a doença já tinha
aprisionado todo meu corpo. Acordei com um sobressalto. Custódia me
vestia uma bata branca, bastante hospitalar.
— Onde vamos?
— Vamos.
E fui, sem mais
pergunta, tropeçando pelo corredor. Dali parei a tomar fôlego e,
encostado na umbreira da porta, olhei o leito onde lutara contra a
morte. De repente, estranhas visões me sobressaltaram: deitado,
embrulhado nos lençóis, estava eu, desorbitado. Meus olhos estavam
sendo comidos pelo mesmo pássaro que atravessara o poente. Gritei
Custódia, quem está na minha cama?” Ela espreitou e riu-se:
— É das febres,
ninguém está lá.
Fui saindo,
torteando o passo. Afastamo-nos do hospital, entramos pelos trilhos
campestres. Naquele tempo, as palhotas dos negros ficavam longe das
povoações. Caminhava em pleno despenhadeiro, o pequeno trilho
resvalava as infernais e desluzidas profundezas. Me perdi das vistas,
mais tombado que amparado nesse doce corpo de Custódia. Voltei a
acordar como se subisse por uma fresta de luminosidade. Aquela luz
fugidia me pareceu, primeiro, o pleno dia.
Mas depois senti o
fumo dessa ilusão. O calor me confirmou: estava frente a uma
fogueira. O calor da cozinha da minha infância me chegou. Escutei o
roçar de longas saias, mulheres mexendo em panelas. Saí da
lembrança, dei conta de mim: estava nu, completamente despido,
deitado em plena areia.
— Custódia!,
chamei.
Mas ela não
estava. Somente dois homens negros baixavam os olhos em mim. Me deu
vergonha ver-me assim, descascado, alma e corpo despejados no chão.
Malditos pretos, se preparavam para me degolar? Um deles tinha uma
lamina. Vi como se agachava, o brilho da lamina me sacudiu. Gritei:
aquela era a minha voz? Me queriam matar, eu estava ali entregue às
puras selvajarias, candidato a ser esquartejado, sem dó na piedade.
Me desisti, desvalente, desvalido. De nada lucrava recusar os
intentos do negro. O homem cortou-me, sim. Mas não passou de uma
pequena incisão no peito. Sangrei, fiquei a ver o sangue escorrer,
lento como um rio receoso.
Um dos homens falou
em língua que eu desconhecia, seus modos eram de ensonar a noite, a
voz parecia a mão de Custódia quando ela me empurrava para o sonho.
Voltei a deitar-me. Só então reparei que havia uma lata contendo um
líquido amarelado. Com esse líquido me pintavam, em besuntação
danada. Depois, me ajeitaram o pescoço para me fazerem beber um
amargo licor. Choravam, pareceu-me de início. Mas não: cantavam em
surdina. Dores de morrer me puxavam as vísceras. Vomitei, vomitei
tanto que parecia estar-me a atirar fora de mim, me desfazendo em
babas e azedos. Cansado, sem fôlego nem para arfar, me apaguei.
No outro dia,
acordei, sem estremunhações. Estava de novo no hospital, vestido de
meu regulamentar pijama. Qualquer coisa acontecera? Eu tinha saído
em deambulação de magias, rituais africanos? Nada parecia. Verdade
era que eu me sentia bem, pela primeira vez me chegavam as forças.
Me levantei como uma toupeira saída da pesada tampa do escuro.
Primeira coisa: fui à janela. A luz me cegou. Podia haver tantas
cores, assim tão vivas e quentes?
Foi então que eu
vi as árvores, enormes sentinelas da terra. Nesse momento aprendi a
espreitar as árvores. São os únicos monumentos em África, os
testemunhos da antiguidade. Me diga uma coisa: lá fora ainda
existem? Pergunto sobre as árvores.
Quer saber mais?
Agora estou cansado. Tenho que respirar muito. Há tanto tempo que eu
não falava assim, às horas de tempo. Não vá ainda, espere. Vamos
fazer uma combinação: você divulga estas minhas palavras lá no
jornal de Portugal — como é que se chama mesmo o tal jornal? — e
depois me ajuda a procurar a minha família. É que sabe: eu só
posso sair daqui pela mão deles. Senão, que lugar terei lá no
mundo? Traga-me um qualquer parente. Quem sabe, depois disso, ficamos
mesmo amigos. Você sabe como eu confirmo que estou ficando velho? É
da maneira que não faço mais amigos. Aqueles de que me lembro são
os que eu fiz quando era novo. A idade nos vai minguando, já não
fazemos novas amizades. Da próxima vez venha com um parente. Ou faça
mesmo o senhor de conta que é meu familiar.
Mia Couto,
in Contos do nascer da Terra
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