segunda-feira, 9 de julho de 2018

Do criminoso pálido

Não quereis matar, ó juízes e sacrificantes, antes que o animal tenha inclinado a cabeça? Vede, o criminoso pálido inclinou a cabeça: em seus olhos fala o grande desprezo.
Meu Eu é algo que deve ser superado: meu Eu é o grande desprezo do homem”: assim falam esses olhos.
Julgar a si mesmo foi seu grande momento: não deixeis que o sublime retorne à sua baixeza!
Não há redenção para aquele que assim sofre consigo, a não ser uma morte rápida.
Quando matardes, ó juízes, que seja por compaixão, não por vingança. E, ao matar, cuidai vós mesmos de justificar a vida!
Não basta que vos reconcilieis com aquele que matais. Que vossa tristeza seja amor ao super-homem: assim justificais que continueis vivos.
Inimigo” deveis dizer, mas não “malvado”; “doente” deveis dizer, mas não “patife”; “tolo”, mas não “pecador”.
E tu, juiz vermelho, se dissesses em voz alta o que já fizeste em pensamentos, todos gritariam: “Fora com esse imundo, com esse verme venenoso!”.
Mas uma coisa é o pensamento, outra é o ato, e ainda outra, a imagem do ato. A roda da causalidade não gira entre eles.
Uma imagem fez empalidecer esse homem pálido. Ele era da mesma altura de seu ato, quando o realizou; mas não lhe suportou a imagem depois de realizado.
Desde então sempre se viu como autor de um único ato. A isso chamo de loucura: a exceção se converteu em essência para ele.
O traço no chão enfeitiça a galinha; o golpe que ele cometeu enfeitiçou sua pobre razão — a isso chamo de loucura após o ato.
Escutai, ó juízes! Há ainda uma outra loucura: aquela antes do ato. Ah, para mim não descestes fundo o bastante nessa alma!
Assim fala o juiz vermelho: “Por que, afinal, esse criminoso matou? Ele queria roubar”.
Mas eu vos digo: sua alma queria sangue, não roubo: ele ansiava pela felicidade da faca!
Mas sua pobre razão não compreendeu essa loucura e o persuadiu. “Que importa o sangue?”, falou; “não queres ao menos praticar um roubo ao mesmo tempo? Tirar vingança?”
E ele deu ouvidos à sua pobre razão: as palavras desta lhe pesaram como chumbo — então ele roubou ao matar. Não queria se envergonhar de sua loucura.
Agora o chumbo de sua culpa volta a pesar sobre ele, e novamente sua pobre razão está rígida, paralisada, pesada.
Se apenas pudesse sacudir a cabeça, seu fardo rolaria abaixo: mas quem sacode essa cabeça?
O que é esse homem? Um amontoado de doenças, que através do espírito se voltam para o mundo: lá querem fazer sua presa.
O que é esse homem? Um emaranhado de serpentes selvagens, que raramente têm sossego estando juntas — então saem, cada qual por si, em busca de presas pelo mundo.
Vede esse pobre corpo! O que ele sofreu e desejou, essa pobre alma interpretou para si — interpretou como prazer assassino e anseio da felicidade da faca.
Quem agora adoece, é assaltado pelo mal que agora é mau: quer causar dor com aquilo que lhe causa dor. Mas houve outros tempos, e outro mal e outro bem.
Outrora era má a dúvida, e a vontade de Si-mesmo. Naquele tempo, o doente se tornou herege ou feiticeira: como herege ou feiticeira, sofreu e quis fazer sofrer.
Mas isso não entra em vossos ouvidos: prejudica os bons entre vós, dizeis. Mas que me importam os bons entre vós?
Muita coisa em vossos bons me causa nojo, e, verdadeiramente, não o seu mal. Quisera eu que tivessem uma loucura da qual perecessem, como esse pálido criminoso!
Quisera eu, verdadeiramente, que sua loucura se chamasse verdade, ou fidelidade, ou justiça: mas eles têm sua virtude para viver muito tempo, e numa miserável satisfação.
Eu sou um corrimão na beira da corrente: quem puder se agarrar a mim, que se agarre! Mas não sou vossa muleta. —

Assim falou Zaratustra.
Friedrich Nietzsche, in Assim falou Zaratustra

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