No que o tempo se
danou a passar desatinado por ele, só por ele, logo por ele que
demorava a entender as coisas direito, Antônio tentou rezar a
Ave-Maria, mas não conseguia chegar no agora e na hora de nossa
morte, amém, em parte porque estava doidinho das ideias, em parte
porque não sabia mais se agora era agora mesmo, se era a hora da sua
morte, amém, ou se não era.
Foi então que
percebeu que não era o tempo que estava passando danado por ele, ele
é que estava danado passando pelo tempo, como quem olha pela janela
de um ônibus que está correndo pra frente, e por um minuto apenas,
um cochilo, um nó no entendimento, ou algo parecido, tem a impressão
de que o ônibus está parado e é a estrada que está correndo pra
trás.
A isso devia se dar
um nome difícil, mas o nome não importava, importava a comparação.
Ele, Antônio, era
o ônibus, enquanto o tempo era a estrada, um correndo, outro parado,
só o que se movia era ele, Antônio, logo ele de quem diziam, que
sujeito parado, esse povo já gosta de difamar os outros.
De repente, o tempo
parou de passar, num solavanco.
Em melhor dizendo,
foi ele que, num solavanco, parou de passar de repente pelo tempo.
Do jeito que vinha
embalado, parou de vez, assim, sem nenhum aviso, estremecendo todas
as ideias do juízo.
Que aquilo não era
agora, disso Antônio tinha certeza.
Morte também não
era.
Coisa igual ele
nunca tinha visto pela única razão de que coisa igual ainda estava
por existir lá no tempo dele.
E se agora não era
mais agora, pelo menos não era o agora que ele conhecia, nem era a
hora da sua morte, amém, se agora era outro tempo, bem ali, na sua
frente, que tempo era esse, ora essa?
Foi chegando logo e
perguntando que danado de tempo era aquele.
Era ali por dois
mil e pouco.
Mais precisamente
25 anos, seis meses e 17 dias depois do dia em que ele tinha partido,
por volta do meio-dia.
A praça, a cidade,
o povo, o mundo todo estava em festa.
Havia mesmo de
chegar em data importante.
Pelo jeito, havia
chegado em cima da hora.
E houve quem lhe
entregasse presente, houve quem risse, quem chorasse, houve até quem
se descabelasse por ver Antônio de perto.
Enquanto os de lá
comemoravam sua partida, os daqui comemoravam sua chegada.
Houve quem
gritasse, três vivas pro cabra que mudou o mundo, houve quem os três
vivas gritasse, soltaram fogos e tudo, e só então Antônio teve
certeza de que aquela festa toda era mesmo pra ele.
Ele nunca podia
imaginar que ia encontrar o mundo assim sem nenhum defeito.
Estava tudo
perfeito, quem diria, bem que Antônio tinha dito que havia de
caprichar no presente.
Por mais que
jurasse, por Deus Nosso Senhor, quando voltasse pra trás e contasse
o que viu, é claro que iam dizer que era mentira.
— Quem já viu
disso, menino?
— Agora ficou
doido de vez.
— Deixe de
conversa.
— Mas esse
Antônio já inventa.
Se não dissessem,
iam pensar, e, se pensassem, até que não era sem motivo.
Quem havia de
julgar que seria possível um negócio daqueles?
Adriana Falcão,
in A máquina
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