A atitude dos
cristãos em relação à lei natural tem sido curiosamente vacilante
e incerta. Havia, de um lado, a doutrina do livre-arbítrio, em que a
grande maioria dos cristãos acreditava – e essa doutrina exigia
que os atos dos seres humanos, pelo menos, não estivessem sujeitos
às leis naturais. Havia, de outro lado, principalmente nos séculos
XVIII e XIX, uma crença em Deus como o Legislador e na lei natural
como uma das principais evidências da existência de um Criador. Em
épocas recentes, a objeção ao domínio da lei nos interesses do
livre-arbítrio começou a ser sentida com mais força do que a
crença no fato de a lei natural dar evidências da existência de um
Legislador. Os materialistas usaram as leis da física para mostrar,
ou tentar mostrar, que os movimentos dos corpos humanos são
determinados de maneira mecânica e que, em consequência, tudo o que
dizemos e toda mudança de posição que efetuamos se localiza fora
da esfera de qualquer livre-arbítrio possível. Se for assim, tudo o
que fica a cargo de nossas vontades desagrilhoadas não tem lá muito
valor. Se, quando um homem escreve um poema ou comete um assassinato,
os movimentos corporais envolvidos em seu ato resultam unicamente de
causas físicas, pareceria absurdo erguer uma estátua para ele no
primeiro caso e enforcá-lo no segundo. Pode ser que ainda reste, em
certos sistemas metafísicos, uma região de pensamento puro em que o
arbítrio seria livre; mas, como isso só pode ser comunicado aos
outros por meio de movimentos corporais, o domínio da liberdade
nunca poderia estar sujeito à comunicação e nunca poderia ter
nenhuma importância social.
Ademais, a evolução
exerceu influência considerável sobre aqueles cristãos que a
aceitaram. Eles viram que não adiantava nada fazer alegações a
favor do homem completamente diferentes daquelas feitas em relação
a outras formas de vida. Portanto, para poder salvaguardar o
livre-arbítrio no homem, fizeram objeção a todas as tentativas de
explicar o comportamento da matéria viva nos termos das leis físicas
e químicas. A posição de Descartes, segundo a qual todos os
animais inferiores são autômatos, não mais encontra simpatia entre
os teólogos liberais. A doutrina da continuidade faz com que eles se
sintam propensos a dar um passo adiante e defender que até mesmo
aquilo que se chama de matéria morta não tem seu comportamento
governado de maneira rígida por leis inalteráveis. Ao que parece,
eles fizeram vista grossa ao fato de que, se for abolido o domínio
da lei, também se fará abolir a possibilidade de milagres, já que
milagres são atos de Deus que vão contra as leis que governam os
fenômenos comuns. Sou capaz, no entanto, de imaginar um teólogo
liberal moderno defendendo, com ar de profundidade, que toda a
criação é milagrosa, de modo que não precisa mais se prender a
certas ocorrências como evidência especial da intervenção divina.
Sob a influência
dessa reação contra a lei natural, alguns defensores do
cristianismo fiam-se nas mais recentes doutrinas relativas ao átomo,
segundo as quais as leis da física em que acreditamos até agora só
dizem respeito a uma verdade razoavelmente aproximada ao ser aplicada
a grandes números de átomos, ao passo que o elétron individual age
praticamente como bem entende. Acredito que esta seja uma fase
temporária e que os físicos, com o tempo, descobrirão leis que
governam os fenômenos atômicos, apesar de ser possível que essas
leis sejam consideravelmente diferentes daquelas da física
tradicional. Seja como for, vale a pena observar que as doutrinas
modernas que dizem respeito aos fenômenos atômicos não têm
influência sobre nada que seja de importância prática. Os
movimentos invisíveis e, de fato, todos os movimentos que fazem
qualquer diferença para alguém envolvem números tão grandes de
átomos que se encaixam bem no escopo das antigas leis. Para escrever
um poema ou cometer assassinato (voltando à nossa ilustração
anterior), é necessário deslocar uma massa considerável de tinta
ou de chumbo. Os elétrons que compõem a tinta podem estar dançando
livremente pelo seu salão de baile, mas o salão de baile como um
todo se move de acordo com as antigas leis da física, e apenas isso
é o que interessa ao poeta e a seu editor. As doutrinas modernas,
portanto, não têm uma influência significativa sobre nenhum desses
problemas de interesse humano dos quais o teólogo se ocupa.
A questão do
livre-arbítrio, em consequência, permanece exatamente onde estava.
Seja o que for que se pense a respeito dela como questão de
metafísica extrema, está muito claro que, na prática, ninguém
acredita nisso. Todo mundo sempre acreditou ser possível treinar o
caráter; todo mundo sempre soube que o álcool ou o ópio surtem um
certo efeito sobre o comportamento. O defensor ferrenho do
livre-arbítrio afirma que um homem pode, por meio da força de
vontade, evitar embebedar-se, mas não afirma que, quando bêbado, um
homem seja capaz de dizer “Constituição Britânica” com tanta
clareza como se estivesse sóbrio. E todos os que já lidaram com
crianças algum dia sabem que uma dieta adequada funciona mais do que
os sermões mais eloquentes do mundo para que elas cresçam cheias de
virtude. O único efeito que a doutrina do livre-arbítrio exerce, na
prática, é evitar que as pessoas sigam ideias tão repletas de
senso comum quanto esta até sua conclusão racional. Quando um homem
age de uma maneira que nos irrita, temos vontade de julgar esse homem
mau, e nos recusamos a aceitar o fato de que o comportamento
irritante dele é resultado de causas anteriores e que, se
remontarmos à sua origem de maneira satisfatória, chegaremos a uma
época anterior ao seu nascimento e, portanto, a eventos sobre os
quais ele não pode ser responsabilizado, por mais que se queira.
Nenhum homem trata
um automóvel da maneira tola como trata outro ser humano. Quando o
carro não dá a partida, não se atribui esse comportamento
irritante ao pecado; não se diz: “Você é um automóvel mau, e
não lhe darei mais gasolina até que dê a partida”. Tenta-se
descobrir o que há de errado e consertar a falha. Uma maneira
análoga de tratar os seres humanos é, no entanto, considerada
contrária às verdades da religião sagrada. E isso se aplica até
mesmo ao tratamento dispensado a crianças pequenas. Muitas crianças
têm maus hábitos que se perpetuam por meio de castigos, mas que
provavelmente deixariam de existir se não se desse atenção a eles.
Mesmo assim, as governantas, com pouquíssimas exceções, consideram
correto aplicar castigos, apesar de assim correrem o risco de causar
insanidade. Quando a insanidade é causada, ela chega a ser citada
nos tribunais de Justiça como prova do prejuízo causado pelo
hábito, e não pelo castigo (estou fazendo alusão a um processo
recente por obscenidade, no estado de Nova York).
As reformas na
educação foram feitas, em grande parte, por meio do estudo dos
insanos e dos deficientes mentais, pois estes não foram
responsabilizados moralmente por suas falhas e, portanto, foram
tratados de maneira mais científica do que as crianças normais. Até
tempos muito recentes, defendia-se que, se um menino não fosse capaz
de aprender suas lições, a cura adequada era dar-lhe golpes de
bengala ou de vara. Essa visão já está quase extinta no que diz
respeito às crianças, mas sobrevive no direito criminal. É óbvio
que um homem com propensão ao crime precisa ser detido, mas o mesmo
vale para um homem que tem hidrofobia e quer morder os outros, apesar
de ninguém considerá-lo moralmente responsável. Um homem que sofra
de peste negra precisa ficar preso até estar curado, apesar de
ninguém o considerar mau. O mesmo deveria ser feito com um homem que
tivesse propensão para falsificações; mas não deveria haver mais
ideia de culpa em um caso do que no outro. E isso é apenas
bom-senso, apesar de ser uma forma de bom-senso a que a ética e a
metafísica cristãs se opõem.
Para julgar a
influência moral de qualquer instituição sobre uma comunidade, é
preciso levar em conta o tipo de impulso incorporado na instituição
e o grau em que a instituição aumenta a eficiência do em tal
comunidade. Às vezes, o impulso em questão é bastante óbvio;
outras vezes, está mais oculto. Um clube de alpinismo, por exemplo,
obviamente incorpora o espírito de aventura, enquanto uma sociedade
culta incorpora o impulso em direção ao conhecimento. A família
como instituição incorpora o ciúme e o sentimento parental; um
time de futebol ou um partido político incorpora o impulso em
direção ao jogo competitivo. Mas as duas maiores instituições
sociais – especificamente, a Igreja e o Estado – são mais
complexas no que diz respeito à sua motivação psicológica. O
propósito primordial do Estado é claramente a segurança contra os
criminosos internos e os inimigos externos. Ele está enraizado na
tendência que as crianças têm de se agrupar quando estão com medo
e de procurar um adulto que lhes dê uma sensação de segurança. A
Igreja tem origens mais complexas. Sem dúvida, a principal fonte da
religião é o medo; isso pode ser visto hoje em dia, já que
qualquer coisa que cause preocupação faz com que os pensamentos das
pessoas se voltem para Deus. Batalhas, pestilências e naufrágios,
tudo isso pode fazer com que as pessoas se tornem religiosas. A
religião tem, no entanto, outros atrativos além do terror: ela
apela, especificamente, à autoestima humana. Se o cristianismo é
verdadeiro, a humanidade não é esse monte de vermes deploráveis
que parece ser; as pessoas são do interesse do Criador do universo,
que se dá o trabalho de ficar feliz quando elas se comportam bem e
chateado quando se comportam mal. Esse é um enorme elogio. Não
pensaríamos em estudar um formigueiro para descobrir quais formigas
desempenharam sua função de formiga, e com certeza não
cogitaríamos separar aquelas formigas que foram relapsas para
lançá-las à fogueira. Se Deus faz isso por nós, se torna um
elogio à nossa importância; e é um elogio ainda mais agradável se
Ele recompensa aqueles entre nós que são bons com a felicidade
eterna no paraíso. Há, também, a ideia relativamente moderna de
que a evolução cósmica foi elaborada de modo a suscitar os tipos
de resultado que chamamos de bons – quer dizer, os tipos de
resultado que nos trazem prazer. Aqui, mais uma vez, é agradável
imaginar que o universo é controlado por um Ser que compartilha dos
nossos gostos e preconceitos.
Bertrand
Russell, in Por que não sou cristão
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