No dia seguinte,
como eu estivesse a preparar-me para descer, entrou no meu quarto uma
borboleta, tão negra como a outra, e muito maior do que ela.
Lembrou-me o caso da véspera, e ri-me; entrei logo a pensar na filha
de Dona Eusébia, no susto que tivera e na dignidade que, apesar
dele, soube conservar. A borboleta, depois de esvoaçar muito em
torno de mim, pousou-me na testa. Sacudi-a, ela foi pousar na
vidraça; e, porque eu sacudisse de novo, saiu dali e veio parar em
cima de um velho retrato de meu pai. Era negra como a noite; e o
gesto brando com que, uma vez posta, começou a mover as asas, tinha
um certo ar escarninho, uma espécie de ironia mefistofélica, que me
aborreceu muito. Dei de ombros, saí do quarto; mas tornando lá,
minutos depois, e achando-a ainda no mesmo lugar, senti um repelão
dos nervos, lancei mão de uma toalha, bati-lhe e ela caiu.
Não caiu morta;
ainda torcia o corpo e movia as farpinhas da cabeça. Apiedei-me;
tomei-a na palma da mão e fui depô-la no peitoril da janela. Era
tarde; a infeliz expirou dentro de alguns segundos. Fiquei um pouco
aborrecido, incomodado.
- Também por que
diabo não era ela azul? disse eu comigo.
E esta reflexão, -
uma das mais profundas que se tem feito desde a invenção das
borboletas, - me consolou do malefício, e me reconciliou comigo
mesmo. Deixei-me estar a contemplar o cadáver, com alguma simpatia,
confesso. Imaginei que ela saíra do mato, almoçada e feliz. A manhã
era linda. Veio por ali fora, modesta e negra, espairecendo as suas
borboletices, sob a vasta cúpula de um céu azul, que é sempre
azul, para todas as asas. Passa pela minha janela, entra e dá
comigo. Suponho que nunca teria visto um homem; não sabia, portanto,
o que era o homem; descreveu infinitas voltas em torno do meu corpo,
e viu que me movia, que tinha olhos, braços, pernas, um ar divino,
uma estatura colossal. Então disse consigo: “Este é provavelmente
o inventor das borboletas.”
A ideia subjugou-a,
aterrou-a; mas o medo, que é também sugestivo, insinuou-lhe que o
melhor modo de agradar ao seu criador era beijá-lo na testa, e ela
beijou-me na testa.
Quando enxotada por
mim, foi pousar na vidraça, viu dali o retrato de meu pai, e não é
impossível que descobrisse meia verdade, a saber, que estava ali o
pai do inventor das borboletas, e voou a pedir-lhe misericórdia.
Pois um golpe de
toalha rematou a aventura. Não lhe valeu a imensidade azul, nem a
alegria das flores, nem a pompa das folhas verdes, contra uma toalha
de rosto, dois palmos de linho cru. Vejam como é bom ser superior às
borboletas! Porque, é justo dizê-lo, se ela fosse azul, ou cor de
laranja, não teria mais segura a vida; não era impossível que eu a
atravessasse com um alfinete, para recreio dos olhos.
Não era. Esta
última ideia restituiu-me a consolação; uni o dedo grande ao
polegar, despedi um piparote e o cadáver caiu no jardim. Era tempo;
aí vinham já as próvidas formigas...
Não, volto à
primeira ideia; creio que para ela era melhor ter nascido azul.
Machado de
Assis, in Memórias póstumas de Brás Cubas
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