Bem
aventurados os apaixonados, que se
esquecem por algum tempo das mazelas do mundo. Deitam-se numa rede de
fios bem trançados, numa cama estreita, num tapete persa ou numa
esteira de palha e se entregam às malícias do amor. Ou deitam-se no
piso de tábuas de uma casa modesta e se esquecem dos magistrados,
dos burocratas, das chuvas destruidoras, dos políticos inativos, dos
impostores e dos pássaros agourentos. Já não se lembram da
segunda-feira árdua e rotineira, do chefe ranzinza ou do subalterno
distraído, do trânsito nefasto com seus motoristas alucinados, nem
daquele casamento que se reduziu a bocas engessadas e momentos de
silêncio que insinuam sentenças hostis.
Apaixonados: seres sonhadores antes do
primeiro duelo, que só às vezes rima com inverno. Ali na praça
conversei com Bandolim, um velho conhecido que perdera sua amada. Nas
vésperas do Natal eu o encontrava triste e lacônico, vendendo
violas que ele mesmo fazia com dejetos fisgados na metrópole, esse
vasto museu do consumo. Mas agora Bandolim havia encontrado uma
amada:
“Minha outra música”, ele disse.
Distraído, ouvi “musa” em vez de
“música”, e logo comprei uma viola do artista errante, que
lembra certos viajantes, esses outros bem-aventurados.
Muitos partem sem bússola e se lançam a
uma aventura. Ou partem em busca de uma paisagem insólita, de um
sabor estranho, de rostos ainda mais estranhos, de lugares sonhados
desde sempre, de noites que se emendam ao dia e novamente à noite,
como se houvesse só espaço nesse mundo regido pelo tempo. Viajantes
com pouca bagagem, movidos pelo desejo de conhecer o que amanhã será
esquecido, ou de esquecer o que irremediavelmente será lembrado além
da nossa fronteira. Alguém te envia uma mensagem do deserto de
Atacama, de uma mesquita de Istambul, de um pueblo de Missiones, de
uma praça de Teresina, Belém ou Sabará, do pátio de um convento
de Olinda; alguém escreve à mão no verso de um postal palavras
sobre o assombro e a beleza da ilha de Creta, onde um mito antigo
resiste aos descalabros do nosso tempo.
Quantas
mensagens via satélite… E só uns poucos postais com a fotografia
de um lugar visitado e cinco frases escritas por calígrafos
anacrônicos.
Invejo a energia quase cósmica desses
viajantes e apaixonados, que celebram suas façanhas com uma comoção
incomum. Posso imaginá-los em transe, e de algum modo eles me
inspiram para escrever essas linhas num quarto úmido, depois da
tempestade. Ali, no pequeno jardim, olho as romãs rosadas, sinto o
cheiro dessas frutas desventradas por pássaros famintos, e logo me
vem à mente os versos do poeta que escreveu “A falta que ama”:
Uma viagem é imóvel, sem rigidez.
Invisível, preside
ao primeiro encontro. Todo encontro,
escala que se ignora.
Milton Hatoum,
in Um solitário à espreita
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