Para uma exposição
de pesquisa e notas sobre a cultura popular brasileira, parece
dispensável a inclusão das crendices do Marquês d’Argens,
falecido há quase duzentos anos e vivendo na perfeita ignorância de
que o Brasil existisse.
Quero apenas
lembrar que os receios desse fidalgo francês do século XVIII, sob
Luís XV e vinte e cinco anos hóspede ilustre de Frederico, o
Grande, Rei da Prússia, espécime de casta nobre, superior e
desdenhosa, são absolutamente os mesmos que afligem a
contemporaneidade popular no Brasil. Nada se perdeu ou modificou, da
mente do aristocrata de Versailles e Sans-Souci para o homem vulgar
dos nossos dias.
Lorde Macaulay
(Macaulay’s essays and lays of Ancient Rome, Londres, 1886),
comentando o livro de Thomas Campbell sobre Frederic the Great and
his times (Londres, 1842), evocou o Marquês d’Argens, Chambellan
do rei da Prússia, e durante vinte e cinco anos seu favorito.
O Marquês Jean
Baptiste de Boyer d’Argens nasceu em Aix, Provença, 1704, e
faleceu no castelo de La Garde, perto de Toulon, em 1771. Uma queda
de cavalo afastou-o da vida militar. Seu pai deserdara-o pelas suas
extravagâncias impertinentes. Leitor insaciável, d’Argens era um
ótimo filho do século, zombeteiro, incrédulo, pessimista,
cínico, absolutamente desprovido do sentimento religioso, inimigo da
Igreja Católica (diríamos, hoje, alérgico), elegantíssimo, cheio
de graças verbais, adamado, cortesão até a medula. Não tendo
Moral, não acreditava na existência dela. Sem Deus, sem Rei e sem
Dama, foi para a Holanda a fim de escrever livremente contra o que a
lei em França proibia. Suas Lettres juives, chinoises et
cabalistiques encantaram Frederico II, que o convidou a fixar-se
na sua Corte.
O livro d’Argens
é um pálido e mofado reflexo do Lettres persannes de
Montesquieu (Amsterdã, 1724), tendo apenas sátira mais salgada e
desrespeitosa e atrevimento fingindo altivez. Em Berlim, d’Argens
dominou e foi um diretor de boas maneiras e de alagante
irreligiosidade sem que deixasse de ser um submisso e rastejante
turiferário do Rei. Depois de cinco lustros de vida prussiana o
provençal rompeu com Frederico II e voltou para sua província, onde
morreu. Em 1778 publicaram suas obras em 24 volumes que ninguém lê.
O retrato d’Argens
é a síntese viva que Macaulay traçou: “The parts of d’Argens
were good, and his manners those of a finished French gentleman; but
his whole soul was dissolved in sloth, timidity, and self-indulgence.
His was one of that abject class of minds which are superstitious
without being religious. Hating Christianity with a rancour which
made him incapable of rational inquiry, unable to see in the harmony
and beauty of the universe the traces of a divine power and wisdom,
he was slave of dreams and omens, would not sit down to table with
thirteen in company, turned pale if the salt fell towards him, begged
his guests not to cross their knives and forks on their plates, and
would not for the world commence a journey on Friday”. (“Os
dotes d’Argens eram bons, e suas maneiras as de um completo fidalgo
francês; mas sua alma se dissolvera em indolência, timidez e
autoindulgência. Pertencia a esta abjeta classe de espíritos que
são supersticiosos sem que sejam religiosos. Odiando o Cristianismo
com rancor, era incapaz de uma indagação racional, sem capacidade
para ver na beleza e harmonia do universo os traços da sabedoria e
poder divino, mas era escravo de sonhos e presságios, não sentando
a uma mesa onde estivessem treze pessoas, ficando pálido quando o
sal derramava-se diante dele, pedindo aos hóspedes que não
cruzassem as facas e os garfos nos seus pratos e por coisa alguma
deste mundo começaria uma viagem numa sexta-feira.”)
Macaulay fixou as
superstições mais permanentes e poderosas num espírito ágil,
brilhante e fácil como o d’Argens, aristocrata e cioso dos
antepassados apesar de fingir começar o mundo por ele mesmo. Eram
essas superstições as comuns e temidas não apenas na França e na
Alemanha, mas na Europa palaciana, nas cortes, salões, mundanidades
sedutoras, de meados do século XVIII. São todas contemporâneas e
constituem soluções defensivas contra o mistério das forças
ocultas na invisibilidade de seu poder maléfico. Continuam
inalteradas no respeito popular na sinistra expressão do agouro.
Treze pessoas à
mesma mesa ainda é tabu na Europa e América. O número 13,
na época de Roma republicana e da Grécia clássica, era respeitado
e evitado. Mommsen não encontrou decretos romanos datados desse dia.
Hesíodo aconselhava não semear no dia 13. A refeição com treze
pessoas é que me parece reminiscência da Última Ceia de Jesus
Cristo com os doze apóstolos. Em Cabala, Numerologia, Macumba,
Catimbó, Magia Negra, o 13 é um elemento que atrai o mal, o
contrário, o às avessas (Superstições e costumes.
Rio de Janeiro: Ed. Antunes, 1958).
O sal derramado na
mesa mantém seu discreto poder ameaçador. Na Ceia larga,
Leonardo da Vinci retratou Judas com o saleiro entornado. O sal é a
conservação, a durabilidade, a garantia. Derramado sugere a
esterilidade, a morte da vida, o abandono vital. Chão salgado,
improdutivo, decretado para o solo das casas arrasadas aos criminosos
de lesa-majestade. É uma notória ameaça de infelicidades.
Cruzar o talher é
repetir materialmente a cruz, signo da Morte, o Tau anunciador
do Destino inexorável, Ananke. Os objetos cruzados significam o Fim.
Braços cruzados, posição da impossibilidade agente. Marcada com
uma cruz, a coisa está votada ao desaparecimento. Sinal de anulação
mágica. Evitam cruzar as mãos quando quatro pessoas se despedem.
Cruzar os dedos quando se mente (superstição europeia) é dissipar
o pecado da mentira. Matá-lo. Cruzar as pernas no quarto da
parturiente retarda indefinidamente o nascimento da criança. Assim
fez a deusa Ilítia para que Hércules não nascesse logo. Desenhada
na madeira das portas e janelas os espectros não passarão. No
interior de Pernambuco, Bahia, Piauí, Goiás, pintam-na para afastar
as epidemias (Arthur Neiva e Belisário Pena, Viagem científica,
Rio de Janeiro, 1916. A viagem realizou-se em 1912). Com os talheres
intencionalmente cruzados nunca mais se reunirão os mesmos
convidados. A superstição do Tau e da Cruz é anterior a Jesus
Cristo. O suplício do Gólgota universalizou a condenação da cruz
que, pela ambivalência natural, é apotropaica, libertadora de
malefícios, assombro dos demônios, penhor da paz. Mas é visível a
imagem de fim, término, acabamento definitivo. Limite. A
sexta-feira era jour néfaste por toda a Europa. Dia em que
Jesus Cristo morreu. Reunião de bruxas e lobisomens. Na noite da
sexta-feira cumprem os encantados o tenebroso destino punitivo. É o
Dia de Vênus, com minúcias e rigores. Nas velhas Macumbas é
dedicado a Obatalá, Orixalá, Iemanjá, Iansam. No Catimbó,
entretanto, é dia benévolo, de fumaça às direitas, para o
bem. Mas, para a maioria, viajar, mudar-se, começar negócio de
vulto, oferecer recepção, iniciar campanha política numa
sexta-feira é arriscar ao fracasso todos os empreendimentos
planejados. Sexta-feira, 13 do mês, é dia perigosamente condenado.
Há quem tenha a
sexta-feira como dia indicado para as felicidades em negócio, amor,
viagens, trabalhos iniciais. Mas é minoria insignificante. O temor
da sexta-feira é ainda na Europa uma constante terrível. Radford
conta que em 1931 dois transatlânticos não partiram no dia marcado
porque os passageiros em massa protestaram veementemente por ser uma
sexta-feira. Mesmo a Good Friday inglesa. Os navios partiram um
minuto depois da meia-noite. Já era o sábado. O agouro passara.
Esses superstitions
passangers de 1931 davam todas as razões do Marquês d’Argens.
Luís da Câmara
Cascudo, in Coisas que o povo diz
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