I
Do
alto da colina, Justo Calisto avista os barcos que se distanciam da
cidade. No meio da tarde, ele tenta divisar, ao longe, os dois rios
que se encontram e separam-se, como duas vidas divididas,
inconciliáveis. É domingo. O remo ali na praia, ao lado da canoa
emborcada. Ele olhou para trás: as fábricas, a Fábrica. Depois
olhou o horizonte e esperou. Para matar o tempo ou alimentar uma
ilusão, lembrou-se do que acontecera no domingo passado.
II
No
último domingo, antes de voltar para casa, ele viu o barco passar
perto da margem. O mesmo barco vermelho de outros domingos, a mesma
mulher sentada na proa, para quem acenara com ânsia. A mulher de
branco apenas levantara a cabeça para o alto da colina. O vento
agitava-lhe os cabelos. Ele não pôde ver com nitidez o rosto dela:
o barco vermelho continuou a navegar rumo ao encontro dos rios. Ainda
era dia quando ele voltou ao bairro próximo da zona industrial.
Caminhou na rua asfaltada, passando ao lado de fábricas silenciosas,
os portões fechados, vigiados por homens armados. Ao entrar no
bairro, evitou andar até a margem do igarapé. No descampado os
vizinhos jogavam bola, e ele imaginou a cena noturna dos outros
domingos, como uma repetição enfadonha.
No
descampado os homens bebiam, se insultavam, brigavam. Os mais fracos
dormiam no lodo. Na boca da noite os urubus saltitavam ao redor dos
corpos ou se empoleiravam nas traves, as asas abertas. Era uma cena
que se repetia, sempre aos domingos. Justo Calisto observava os
vizinhos correrem no descampado e os imaginava caídos, vencidos. Não
falou com eles, entrou calado na palafita, deu aos dois pássaros
engaiolados pedaços de banana; outro pássaro, avermelhado, pousou
no batente da janela, perto da rede. Um vento morno crispou a água
suja do igarapé. Vai chover, pensou. O inverno: chuva ruidosa, chuva
de canivete. Vinte invernos neste bairro, nesta palafita. Quando
chove assim, o igarapé transborda, o descampado vira uma lagoa, o
cheiro de podridão empesta o lugar. Na casa vizinha, ouviu os sons
de uma televisão, um chiado no ruído da chuva. Ouviu também gritos
de crianças, choro de crianças. Logo, logo a água vai se infiltrar
no assoalho da casa. Justo Calisto deita-se na rede da varandinha da
palafita e espera a chuva passar, espera o domingo escurecer e ir
embora, como alguém que detesta este dia.
Quando
estiou, a televisão e as crianças calaram, mas logo uma assuada na
vizinhança cortou o silêncio do entardecer. Viu uma roda de gente
agitada: dois homens retornavam do descampado puxando um bicho da
beira do igarapé. O jacaretinga se contorceu, enlameado,
desfigurado, as mandíbulas presas por um pedaço de arame farpado.
Um dos homens caceteou a cabeça do bicho; o outro lhe furou os olhos
com uma antena enferrujada. Alguém acendeu uma lamparina: dois
pequenos círculos acenderam que nem brasa. Olhos quase mortos. O
jacaretinga estremeceu, rabeou, descaiu o focinho ferido. A lâmina
de um terçado abriu-lhe o ventre, a mesma lâmina decepou-lhe o
rabo. Justo Calisto encarou os dois matadores. Nesses atos tentamos
esquecer nossos crimes, pensou. Um homem baixo e franzino cortou a
cabeça do réptil, lançou-a no igarapé e soltou um guincho de
triunfo. A terra molhada sorveu a poça de sangue. Os outros homens
fecharam a cara, se afastaram, sumiram. Justo Calisto voltou à
varandinha. Deitado na rede, ele esperou o sono, esperou o próximo
fim de semana…
III
No
começo da tarde deste domingo, ele abriu a gaiola: os dois pássaros
voaram na mesma direção. Enrolou a rede em que dormira por mais de
vinte anos e saiu de casa. Percorreu a pé o caminho que o separava
da beira do rio. Agora, no alto da colina, ele pensa no que pode
acontecer…
Ao
avistar o barco vermelho, ele desceu a colina e aproximou-se da
canoa. Mais perto dele, mais perto da margem, o barco diminuiu a
marcha e parou. Então ele viu o rosto da mulher e quase ao mesmo
tempo leu o nome de um rio na proa vermelha, o rio em que ele
nascera. Justo Calisto teve a impressão de que esta seria a última
viagem do barco vermelho. Ele não acenou para a mulher.
No
interior da cabine, um velho segurava o timão. Agora, sob o sol
fraco do entardecer, o rio parecia mais vasto, a água mais escura e
espessa. O silêncio envolveu a atmosfera de mais um domingo que
findava. Justo Calisto entrou na canoa e começou a remar,
lentamente, rumo ao barco. Olhou para trás, viu pela última vez as
fábricas, diminuídas pela distância. Quando a canoa alcançou a
sombra do barco, ele parou de remar e saltou para o tombadilho.
Depois, ele e a mulher, abraçados, viram a canoa flutuar à deriva,
rio abaixo…
Milton
Hatoum, in Um solitário à espreita
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