A
cozinheira abriu a porta da área de serviço. De cartão de
identidade e talão de recibos em punho, o desconhecido ofereceu-lhe
uma chance extraordinária:
— As
empregadas domésticas não são sindicalizadas, não descontam para
Iapês, não têm o menor amparo. Se adoecem, azar delas: o jeito é
morrer à míngua. Mas com trezentos cruzeiros a senhora terá
direito a hospital, operação, medicamentos e tudo mais. Hospital de
propriedade exclusiva de domésticas, um estouro.
— Só
trezentos cruzeiros?
— Bem,
até o dia 30. Mês que vem em diante, custa dez mil cruzeiros.
Aproveite enquanto o dólar está a mil e cem e assine este
formulário de inscrição.
—
Assinar o quê? Não sou escritora que
nem meu patrão, que vive assinando livro na livraria. Eu mexo é com
colher.
— Estou
vendo que a senhora é desconfiada, no que faz muito bem. Hoje em dia
nem na gente mesmo a gente deve confiar. Mas isto é diferente. Estão
aqui as plantas, fotografias da maquete, nomes da diretoria, pessoal
de responsabilidade.
—
Hospital na planta, moço? É demagogia.
— Daqui
a pouco vai existir em Coqueiros, sim senhora, e quero só ver o seu
vexame quando passar por lá.
— Então
me procura mais tarde, que agora estou muito ocupada lavando panela.
—
Quando não tiver mais lugar de sócio
fundador privilegiado, né? Está assim de candidato. A senhora se
arrisca a ficar como sócia cooperadora não privilegiada, sem
direito a acompanhante que não paga diária.
— Estou
somando? Quem me acompanha é Deus, que nunca pagou diária.
— Quer
dizer que é solteira.
— Com
a graça de Deus.
— Me
desculpe se estou avançando o sinal, mas não acho graça de Deus
nenhuma nisso.
— Está
desculpado. Acontece que não é da sua repartição.
— Eu
sei. Falei porque desejo o seu bem-estar.
—
’brigada.
— Não
tem de quê. Sendo doméstica e solteira, são duas razões pra se
defender, assinando este papelzinho.
— Eu,
hem? Então o senhor pensa que ilude assim uma mineira de Manhuaçu?
— Uai, a senhorita é mineira? Também sou de lá.
— De
lá daonde?
— De
Ubá.
— Ara,
mineiro querendo tapear mineiro. Estou te estranhando, criatura.
—
Credo: tapear, eu? E logo uma distinta
patrícia da Mata. Até parece que foi a luz da minha finada mãe que
me guiou até aqui.
— Pra
eu te passar trezentos cruzeiros?
— Quem
falou em trezentos cruzeiros? Ela ia lá fazer uma coisa dessas? Me
guiou para meu bem, está na cara. No meio de mil empregadas do
estado do Rio, do Espírito Santo, do Nordeste, por que é que eu vim
procurar logo uma moça de Manhuaçu, terra da família de minha
santa mãe, que está lá no alto? Me diga, se é capaz? Pra vender
esse troço de cota de hospital que uma garota como você não
precisa nem vai precisar nunca, e sei lá até se funciona ou se fica
no vou-te contar? Não, ela não me fazia isso. Foi pra te conhecer e
fazer nossa felicidade, bem. Mas como é mesmo o teu nome, anjo de
Deus no Leblon?
Menos
uma cozinheira.
Carlos
Drummond de Andrade, in 70 historinhas
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