Fiquei
prostrado. E contudo era eu, nesse tempo, um fiel compêndio de
trivialidade e presunção. Jamais o problema da vida e da morte me
oprimira o cérebro; nunca até esse dia me debruçara sobre o abismo
do Inexplicável; faltava-me o essencial, que é o estimulo, a
vertigem...
Para
lhes dizer a verdade toda, eu refletia as opiniões de um
cabeleireiro, que achei em Módena, o qual se distinguia por não as
ter absolutamente. Era a flor dos cabeleireiros; por mais demorada
que fosse a operação do toucado, não enfadava nunca; ele
intercalava as penteadelas com muitos motes e pulhas, cheios de um
pico, de um sabor... E não tinha outra filosofia.
Nem
eu. Não digo que a Universidade me não tivesse ensinado alguma; mas
eu decorei-lhe só as fórmulas, o vocabulário, o esqueleto.
Tratei-a como tratei o latim: embolsei três versos de Virgílio,
dois de Horácio, uma dúzia de locuções morais e políticas, para
as despesas da conversação. Tratei-os como tratei a História e a
Jurisprudência. Colhi de todas as coisas a fraseologia, a casca, a
ornamentação, que eram para o meu espírito, vaidoso e nu, o mesmo
que, para o peito do selvagem, são as conchas do mar e os dentes de
pessoa morta.
Talvez
espante ao leitor a franqueza com que lhe exponho e realço a minha
mediocridade; advirta que a franqueza é a primeira virtude de um
defunto. Na vida, o olhar da opinião, o contraste dos interesses, a
luta das cobiças obrigam a gente a calar os trapos velhos, a
disfarçar os rasgões e os remendos, a não estender ao mundo as
revelações que faz à consciência; e o melhor da obrigação é
quando, à força de embaçar os outros, embaça-se um homem a si
mesmo, porque em tal caso poupa-se o vexame, que é uma sensação
penosa, e a hipocrisia, que é um vício hediondo. Mas, na morte, que
diferença! que desabafo! que liberdade! Como a gente pode sacudir
fora a capa, deitar ao fosso as lentejoulas, despregar-se,
despintar-se, desafeitar-se, confessar lisamente o que foi e o que
deixou de ser! Porque, em suma, já não há vizinhos, nem amigos,
nem inimigos, nem conhecidos, nem estranhos, não há plateia. O
olhar da opinião, esse olhar agudo e judicial, perde a virtude, logo
que pisamos o território da morte; não digo que ele se não estenda
para cá, e nos não examine e julgue; mas a nós é que não se nos
dá do exame nem do julgamento. Senhores vivos, não há nada tão
incomensurável como o desdém dos finados.
Machado
de Assis, in Memórias póstumas de Brás Cubas
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