O
que não pode florir no momento certo acaba explodindo depois.
Outro
dito de Tizangara
A
vila se formigava em roda vivente. Constava que, da capital, não
tardaria a chegar a importantíssima delegação com soldados
nacionais e os das Nações Unidas. Vinha igualmente um chefe
maiúsculo do comando das tropas internacionais. Com os militares
estrangeiros vinham o ministro não governamental e uns tantos chefes
de departamentos vários. E mais um tal Massimo Risi, um italiano,
homem sem gerais patentes. Seria esse que iria estacionar uns tempos
em Tizangara.
Eu
já estava na praça, perfilado junto com os chefes da administração
local. Éramos a comissão de recepção, faríamos as honras à
terra. O administrador Estêvão Jonas se retorcia nervoso. Ele
mandava e desmandava, desfazia trinta por nenhuma linha.
—
Alinhados! — repetia ele, comandando
nossas posições.
Mesmo
atrapalhado, ele se mostrava ainda vaidoso, peito mais arredondado
que o pombo em arrasto de asa. Assim emperuado, sua pele reluzia
ainda mais escura, repuxados os brilhos de sua fronte.
De
entre a multidão figurava um bem visível cartaz com enormíssimas
letras: “Boas vindas aos camaradas soviéticos! Viva o
internacionalismo proletário!”. O administrador deu ordem
instantânea de se mandar retirar o dístico. E que ninguém entoasse
vivas a ninguém. O povo andava bastante confuso com o tempo e a
atualidade.
—
Distribuam os nossos dísticos, esses que
mandámos pintar ontem.
— É
melhor não, Excelência.
— E
porquê? — É que as tintas desapareceram lá do armazém.
— E
os panos?
— Os
panos não desapareceram. Os panos roubaram.
Estava-se
nessas desconformidades quando surgiu em nossa frente um cabrito
malhado. O bicho destoava das solenidades. O administrador arreganhou
em surdina:
— Quem
é esse cabrito?
— De
quem é ... — o secretário corrigiu, discreto.
— Sim,
de quem é essa merda?
— Esse
cabrito não será dos seus, Excelência?
A
ordem para evacuar dali o caprino veio tarde de mais: as sirenes já
invadiam a praça. Num segundo, as velozes viaturas encheram a praça
de poeira e ruído. De súbito, a travagem aflita. E escutou-se um
baque surdo, o fragor de um carro embatendo num corpo. Era o cabrito.
O bicho voou que nem uma garça felpuda e se estatelou num passeio
próximo. Não morreu instantâneo. Antes, ficou por ali, manchado e
desmanchado, amplificando seus berros pelo mundo. Com o embate, um
chifre saltou com tal ímpeto que veio esbarrar no adjunto Chupanga.
O homem pegou no desirmanado corno e entregou-o ao administrador.
—
Excelência, isto é seu.
Estêvão
Jonas, em fúria, atirou o chifre para o chão. Puxou-me pelo braço,
num esticão, e segredou a ordem árida:
— Vá
ali e mate-me de vez esse filho da puta desse cabrito.
Impossível
obedecer. Já os visitantes saíam dos carros com imponência e o
administrador, em transe, repetiu o despropositado comando:
—
Alinhados!
Pensando
que a ordem lhe era destinada, o povo se ajeitava em filas quase
indianas. Logo a praça se arranjou a jeito de cerimônia militar.
Estêvão Jonas passou às apresentações. Sua voz, contudo, era
continuamente abafada pelos balidos do cabrito.
— Este
aqui é...
— Mééé!
Sabotagem
ideológica do inimigo, foi assim que, mais tarde, o administrador
classificou as interferências sonoras. Quem mais quereria atrapalhar
o esplendor daquela solenidade? Na circunstância, porém, havia que
desembaraçar o momento, sacudir poeira e sobrelevar. O ministro
tomou conta da situação e emitiu despacho:
— Vamos
já ao local da ocorrência.
Em
volta, foi difícil encontrar espaço. O povo se conglomerava,
espantado de presenciar tal desfile de eminências. Tudo aquilo
chamado por um sexo masculino, ainda para mais jazendo em paz? E às
centenas se aglomeraram os tizangarenses. Uns se admiravam de me ver
ali, entre os notáveis. Passara eu a partilhar da panela dos
graúdos, a beneficiar do fogão deles? Outros me acenavam com
improvisado respeito, não fosse eu um mandador de chuva.
Os
recém-chegados foram perdendo segurança à medida que forçavam
caminho até ao local da descoberta. Ali, entre as massas, nem se
vislumbra quem é o devido quem. Dona Ermelinda, ao lado de seu
esposo, lhe bichanava:
—
Reparou nas sirenes? Não será que lhes
pode pedir para eles as deixarem aqui?
Aflitos,
os estrangeiros comprimiam as máquinas fotográficas de encontro às
barrigas, não fosse o diabo destecê-las. No meio da turbulência,
entre puxões e empurrões ainda se escutavam os comandos do
administrador:
—
Alinhados!
Enfim,
chegaram todos à estrada onde jazia o anônimo sexo. Formaram
círculo e o silêncio deu um nó em volta. Assim, calados, pareciam
prestar sentidas homenagens. O fato de o dito apêndice haver
resistido aquele tempo sem ter sido removido pelos bichos era assunto
que convocava as imaginações.
Até
que o representante do governo central, depois de muito esfregar o
vazio dos bolsos, tossiu e metafisicou hipótese: aquilo, em plena
estrada, era um órgão ou organismo? E se era órgão, assim díspar
e ímpar, de quem havia sido cortado? E logo se acenderam
despropositados debates. Via-se que era o poeirar de vozes, só para
espantar silêncio. Até que o administrador local sugeriu:
— Com
o devido respeito, Excelências: e se chamássemos Ana Deusqueira?!
— Mas,
essa Ana, quem é? — inquiriu o ministro.
Vozes
se cruzaram: como se podia não conhecer a Deusqueira? Ora, ela era a
prostituta da vila, a mais competente conhecedora dos machos locais.
—
Prostitutas? Vocês já têm cá disso?
E
o administrador, empoleirado na vaidade, murmurou:
— É
a descentralização, senhor ministro, é a promoção da iniciativa
local! — e repetia, enfunado: — A nossa Ana!
O
ministro ainda achou por bem refrear aquele entusiasmo crescente:
— A
nossa, quer dizer...
Mas
o administrador já ia de vela e viagem. E prosseguia: que essa Ana
era uma mulher às mil imperfeições, artista de invariedades,
mulher bastante descapotável. Quem, senão ela, podia dar um parecer
abalizado sobre a identidade do órgão? Ou não era ela perita em
medicina ilegal?
— Está
compreender, Excelência? Chamamos a Ana Deusqueira para ela
identificar o todo pela parte.
— Pela
parte?
—
Pela... pela coisa, quer dizer, refiro-me
à questão pendente.
E
logo despachou mandamentos, em trejeitos militares, não fossem os
estrangeiros pensar que o martelo não tinha cabo:
—
Senhor adjunto, vá chamar Ana
Deusqueira.
Já
o mensageiro partia, fulminante, quando estacou e arrepiou caminho. E
perguntou ao administrador, em voz pública:
—
Desculpe, Excelência, mas onde poderei
encontrar a cuja convocada?
Estêvão
Jonas pigarreou, atrapalhaço. Ora, ele, por que raio ele tinha que
saber do paradeiro dessa uma criatura? E chamando o adjunto mais
perto lhe bichanou:
— Seu
burro! Vá aquele sítio que você já sabe.
Foi
uma fração de nada enquanto a ordem se cumpriu. O administrador,
entretanto, deu de caras com a minha pessoa e me ordenou:
—
Traduza, traduza para o senhor Risi!
— Não
vale a pena, ele está acompanhar tudo.
— Ao
menos, faça um resumo. Aproveita para introduzir... quer dizer, para
explicar a nossa Deusqueira.
Não
deu tempo. Já Ana Deusqueira se anunciava, com menos sirene que a
delegação, mas com maiores espampanâncias. A mulher exibia
demasiado corpo em insuficientes vestes. Os tacões altos se
afundavam na areia como os olhos se espetavam nas suas curvaturas. O
povo, em volta, olhava como se ela fosse irreal. Até recentemente
não existira uma prostituta na vila. Nem palavra havia na língua
local para nomear tal criatura. Ana Deusqueira era sempre motivo de
êxtase e suspiração.
A
mulher se desculpou quando se apercebeu da oficiosa expectativa.
Chupanga, todo manteigoso, bichanou no ouvido da prostituta a breve
explicação das circunstâncias. Afinal, não fora convocada para os
usuais préstimos. Ana recebeu a surpresa, sempre em pose. Depois,
amoleceu os charmes e agravou a voz. Ao fim ao cabo, vinha envergada
a despropósito. Para quê a arte se falta o artifício? A mulher
passou a mão pela cabeleira postiça e suspirou:
—
Txarra! Estava pensar era uma chamada de
serviço. E com taxa de urgência.
Soltou
a gargalhada, em afronta. Depois, ela se aproximou da esposa do
administrador e a contemplou em desafio. Media-lhe as alturas,
descomparando-a. Quem, afinal, era a mais-que-primeira dama? Queixo
altivo, em meio riso:
— Como
está a nossa Primeira Senhora?
Dona
Ermelinda tinha os olhos que cuspiam. Seu esposo a afastou,
precavendo desmandos.
— Volte
para casa, mulher.
— É
melhor ela ficar — corrigiu a prostituta —, e irmos juntas lá
ver os restos do acidente. Quem sabe ela pode ajudar a identificar a
coisa?
O
confronto ficou-se por ali. Porque os estrangeiros fardados rodearam
a prostituta, fungando da intensidade dos seus aromas. A delegação
se interessava: seria zelo, simples curiosidade? E pediram-lhe
documentos comprovativos da sua rodagem: curriculum vitae ,
participação em projetos de desenvolvimento sustentável, trabalho
em ligação com a comunidade.
—
Duvidam? Sou puta legítima. Não uma
desmeretriz, dessas. Até já dormi com...
—
Adiante, adiante — apressou o ministro,
que logo iniciou uma dissertação sobre vagos assuntos como as
previsões da chuva, o estado miserável das estradas e outras
nenhumarias.
Ana
Deusqueira a tudo respondia, em verbo e gesto, olhos postos no
italiano. Depois do inquérito, ela se aproximou de Massimo Risi e
lhe segredou no ouvido. O que ela disse ninguém sabe. O povo só via
o branco ficar vermelho e voltar a enlividecer, cara pendurada no
rosto.
Depois,
a prostituta deu costas à delegação e aproximou-se do polémico
achado, no chão da estrada. Mirou o órgão desfigurado, tombado
como um verme flácido. Joelhou-se e, com um pauzinho, revirou o
hífen carnal. Em volta de Ana Deusqueira se formou um círculo,
olhos de ansiosa expectativa. Impôs-se silêncio. Até que o chefe
da polícia local inquiriu:
—
Cortaram esta coisa do homem ou
vice-versa?
— Essa
coisa, como o senhor polícia chama, essa coisa não pertence a
nenhum dos homens daqui.
— Está
certa?
— Com
a máxima e absoluta certeza.
Cumprida
a examinação, Ana Deusqueira sacudiu as mãos e abanicou a
cabeleira desfrisada como se fosse uma rainha. O ministro chamou à
parte o delegado das Nações Unidas. Conferenciaram-se:
—
Desculpe lhe dizer, mas eu acho que é
mais um desses casos ...
— Quais
casos? — perguntou o estrangeiro.
—
Desses das explosões.
— Não
me diga uma coisa dessas!
—
Digo-lhe que é mais um explodido.
— Não
me venha com essa merda dos explodidos. Desculpe lá, mas essa eu não
engulo.
— Mas
eu, como ministro, recebo informações...
—
Escute bem: já desapareceram cinco
soldados. Cinco! Eu tenho que dar relatório aos meus chefes em Nova
Iorque, não quero estórias nem lendas.
— Mas
o meu governo...
— O
seu governo está a receber muito. Agora são vocês a dar qualquer
coisa em troca. E nós queremos uma explicação plausível!
E
o representante do mundo impôs condição: exigia-se um relatório
bilingue, previsões orçamentais e prestação de imediatas contas.
O chefe da missão espumava as raivas:
— É
que já é de mais: cinco, com este seis!
Seis
soldados das Nações Unidas tinham-se eclipsado, não deixando
nenhum traço senão um rio de delirantes boatos. Como podiam
soldados estrangeiros dissolver-se assim, despoeirados no meio das
Áfricas, que é como quem não diz, no meio de nada? O ministro,
amargado, respondeu:
— Está
certo, vou falar com a pu... com a prostituta.
— Isso,
fale. O que eu quero é esclarecer a situação. E ouça: quero tudo
gravado. Não quero blá-blá-blá, estou cansado de folclore.
— Mas
os depoimentos são todos unânimes: os soldados explodem!
—
Explodem? Como é que explodem sem minas,
sem granadas, sem explosivos? Não me venha com conversa. Quero tudo
gravado, aqui.
Entregou
um gravador e uma caixa de cassetes. Sobrou um silêncio grave. Para
disfarçar as aparências de submissão, o ministro foi rodando os
dedos pelos botões do aparelho. Súbito, soltou-se uma música do
gravador, sons quentes desencadearam-se pelos ares e o povo,
instantâneo, desatou a dançar. O universo, num segundo, se
converteu numa infinita pista de dança. Atrapalhado, o ministro
meteu os dedos pelas mãos, demorando a parar a fanfarra. A música
lá silenciou e ainda ficaram uns pares rodopiando. Mais longe, o
cabrito balia em gemidos mais e mais enfraquecidos.
— O
que é isto? — inquiriu um ilustre.
— Não
é nada, são crianças imitando... isto é, brincando — se
apressou a declarar o administrador.
O
responsável da ONU semelhava um dragão flamejando pelas narinas.
Olhou o firmamento como se suplicasse compreensão divina. Chamou
Massimo Risi e deu-lhe as rápidas e derradeiras instruções.
Depois, entrou na espaçosa viatura, batendo a porta em fúria. Mas o
jipe não pegou: nervoso do motorista, emagrecimento da bateria? O
motor nhenhenhou-se em tentativas sucessivamente frustradas. O
representante do mundo, de janelas fechadas, esperava certamente uma
mão generosa para tchovar a viatura.
Mas
o povo não se apressou a empurrar. O estrangeiro ficou de fronha no
vidro, sem coragem para mendigar ajudas. Passou-se um pedaço. Na
face do internacional consultor, gotas de suor escorriam mais velozes
que os lentos minutos do tempo.
Foi
Ana Deusqueira quem emitiu um estalar de dedos. Num segundo, mãos às
dezenas se juntaram nas traseiras do veículo. Enquanto o povo
empurrava a viatura, a prostituta enfeitou-se como se estivesse
emoldourada, mãos sobre as coxas. Altiva, ficou olhando a comitiva
desaparecer sem dignar um aceno de despedida. Quando a poeira
reassentou, ela ainda soslaiou um breve olhar na estrada. Confirmou,
então, que Massimo Risi ficara na vila, juntamente com uma porção
de chefes. Ana Deusqueira se aproximou dele e disse:
—
Morreram milhares de moçambicanos, nunca
vos vimos cá. Agora, desaparecem cinco estrangeiros e já é o fim
do mundo?
O
italiano permaneceu mudo. Ana Deusqueira se encostou nele,
dengosamente, e prometeu que ajudaria a esclarecer o mistério. Por
exemplo, ela podia adiantar um segredo do que observara do resto do
malogrado. Por acaso, o estrangeiro notara o tamanho daquele resto? A
esperada revelação se fez ouvir:
— Esse
homem aí era do sexo maisculino.
E
a prostituta deflagrou uma gargalhada enquanto afastava uma imaginada
poeira dos fios escorridos de sua falsa cabeleira.
Mia
Couto, in O último voo do flamingo
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