A
paixão é descoberta, tudo no outro é novo e nos agrada. Vive-se
uma tolerância exacerbada, perguntamos mais vezes, aceitamos o que é
estranho, mergulhamos numa fase didática do corpo e da
personalidade.
Não
existe nenhuma solenidade para explicar, não nos enervamos, toda
questão é pertinente, atravessamos madrugadas repetindo
recordações.
O
que odiamos não é tão grave assim para ser defendido. O que
adoramos não é tão imutável assim para não ser contrariado.
Atrasos são creditados ao engarrafamento. Ofensas são perdoadas com
afagos no rosto. A separação é impossível, acreditamos até
depois que se provou o contrário.
Quando
conheci Cínthya, no segundo dia juntos, ela soluçou. Aquilo foi
inacreditável. Parei em sua frente, incapaz de buscar um
copo-d’água. Vidrado em seu soluço, admirado, embasbacado. O
soluço era a gargalhada do medo, não podia permiti-lo escapar.
Esperava um por um dos saltos de sua voz. Vontade de apanhar os sons
pela casa como bolhas de sabão.
Seu
soluço brilhava para mim. Já cronometrava o intervalo das
ocorrências. Agia como um cientista, um sábio de soluços, sua boca
caminhava sobrenatural pelos meus olhos, anotava as constelações
dos traços e as estrelas das pintas, procurava a mínima casualidade
para fundamentar a predestinação do nosso encontro e confirmar a
suspeita de que éramos para a vida inteira.
Naquela
época, multiplicávamos os milagres. Não tinha somente confiança
nela, tinha fé.
Depois,
quando veio o amor, parece que a relação extraviou o encanto. Tudo
é conhecido e nos irrita. Surgem reclamações, a pressa, os
incômodos dos hábitos em comum. Pertencemos a uma legião
inumerável dentro do casamento dos saudosos da paixão, que não
entendem o que aconteceu de errado.
Eu
digo que não houve nada de errado. Não há nada de errado.
Não
é que o outro deixou de dar, é que amamos mais. Não é que o outro
está ausente e acomodado, é que exigimos mais. Ficamos insaciáveis,
pois recebemos ternura de alguém como nunca antes.
O
que indica desamor é nosso desejo infinito de completude.
As
reivindicações aumentaram com a intimidade. O que antes era atenção
hoje é rotina. Aguarda-se que o par conserve nossas características,
necessidades e aspirações, que não se desligue um minuto, que não
renuncie a gentileza sequer para ir ao banheiro.
Somos
mais suscetíveis, frágeis. Temos mais a perder. Choramos com a
mínima elevação do timbre numa conversa.
As
expectativas estão dobradas, a carência triplicou, não admitimos
qualquer coisa, queremos que nossa companhia contextualize a raiva,
suporte o azedume, ajude no excesso de trabalho, ampare a educação
dos filhos. Despejamos, numa única pessoa, a nossa raiva, a nossa
esperança, a nossa ansiedade. Por enxergá-la sempre, é com ela que
brigamos — não temos ninguém mais a recorrer.
Se
a paixão é descoberta, o amor é invenção. Não abandone o futuro
porque ele já é menor do que o passado.
Fabrício
Carpinejar, in Ai meu Deus, ai meu Jesus
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