O
que a gente escuta neste salão não convém publicar, meu filho. Mas
posso contar umas coisinhas. Às vezes não entendo nada do que falam
e me concentro nas cutículas ou na pintura nos cantos de uma unha.
Tem
de tudo: unhas delicadas, grossas, maltratadas, roídas, bichadas. E
história para todo gosto. Por exemplo, o marido da minha cliente
menos avarenta senta num banquinho e lê sempre o mesmo livro:
Bucólicas. Um homem sereno, com cara de bode e uma
bandeirinha do Brasil espetada na gola da camisa. Que diabo ele tanto
admira nessas bucólicas? É verdade que a esposa dele é uma mulher
triste, e mais triste ainda quando escolhe um esmalte cor de palha
para pintar as unhas. Será o livro uma história da mulher do
leitor? Não sei. O que eu sei é que quando acabo meu trabalho ela
diz: “Azevedão, espicha a gaita”. Estranho: Azevedão não é
grande nem grandioso, a voz dele é mais fina que a de uma menina
mimada. O fato é que o Azevedão das Bucólicas me dá uma
gorjeta que garante o sorvete do meu filho. As outras mulheres vêm
sozinhas, mas todas leem revistas de fotos e fofocas de famosos,
nenhuma lê Bucólicas; aliás, nenhuma é triste, ninguém
abre um livro neste salão de beleza. E se fosse só de beleza…
Falo sério: aqui sobra feiura, sobra tanta coisa, nem te conto.
Todas querem ter mãos lindas, mas o tempo é cruel, meu filho. Às
vezes me espanto quando vejo um anelão de ouro num dedo de bruxa e,
quando olho a cara da mulher, penso: como é que esse diabo casou? E
eu, como é que eu me juntei com um safado que logo me largou e
trocou por outra? Aí penso nas unhas que limpo e pinto, e digo para
mim mesma: eu faço a mão dessas mulheres, e o que essas mãos
fazem? Trabalham? Lavam roupa e louça? Contam dinheiro? Fazem sexo?
Quer dizer, ajudam a fazer sexo?
Essas
mãos traem?
E
como! Ouvi cada história de unhas traidoras, unhas pintadas por mim,
dezenas de mãos adúlteras. Cansei de ouvir nome de hotel, nome de
motel, nome de amante. Uma dessas mãos me disse: “Ericleuza, minha
querida, será que ele vai gostar das minhas unhas roxas?”.
Eu
conhecia o marido dela, um senhor alinhado, magro que nem caniço,
mais paciente do que um chinês. Mas não era chinês, era brasileiro
mesmo, coitado.
“O
doutor? Unhas roxas? Não sei. Talvez não.”
Ela
deu uma gargalhada: “O doutor não olha para as minhas mãos, sua
tonta. O outro olha”.
E
eu não sabia o que dizer, porque não conhecia o outro. Então a
madame me disse que ia com o outro toda semana a um motel na Marginal
do Tietê, bem depois do presídio. Ela até tirou um cartão da
bolsa e me deu: Amor Perdido Amor. Nome esquisito. Por que a palavra
amor duas vezes? Perdido por perdido, uma vez não bastava? E
a mulher ainda me disse: “Vai lá, minha querida, Amor Perdido Amor
é baratinho. E ninguém nos vê”.
Olhei
os brilhantes nas mãos dela e pensei: que coroa corajosa! Que mulher
ousada! Usa anel de brilhante em São Paulo e ainda frequenta
pardieiro.
E
os homens que fazem as mãos?
Vaidosos
até o tutano, meu filho. Mas como são educados! Colocam as mãos de
príncipe no meu regaço. Falam menos do que as mulheres, alguns são
mais exigentes, nenhum lê Bucólicas nem se interessa pelas
fotos de mulheres nas revistas. Mas ai de mim se meu alicate falhar!
Mãos de seda, nunca pegaram pau de enxada, só cabo de guarda-chuva.
Quando chove, é um desfile de cabos finos. Eles não falam de motel,
acho que são homens fiéis, ou vai ver que nenhum é indiscreto.
Eles dizem “Obrigado, Ericleuza”, pagam e vão embora. No mês
passado, um deles… Ah, que homem distinto. Lembro que era calado,
mas não era carrancudo nem bucólico, só sério. Quando terminei de
pintar as unhas dele, reparei nas sobrancelhas. Que olhos, meu filho!
Soprou o esmalte com tanta delicadeza que me comoveu. Senti o sopro
no meu rosto, um ventinho morno, suave. Aí ele me olhou tanto, e com
tanta ternura, que acreditei em alguma coisa: acreditei numa coisa
tão linda que meu corpo tremeu, e eu senti aquela quentura…
Milton
Hatoum, in Um solitário à espreita
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