domingo, 4 de fevereiro de 2018

A travessia do tempo (trecho)

Por antecipação, Mwadia deleitava-se com o espanto que a sua chegada iria causar em Vila Longe. Quem se iria regalar com a aparição da Santa seria a Tia Luzmina Rodrigues, a única irmã de seu padrasto. Ela era a mais dedicada beata em Vila Longe. Dormia abraçada a postais de santinhos e, mesmo contra a vontade do padre, dava banho às figuras da pequena igreja. Para Luzmina tudo nascia da limpeza: até a santidade vinha da água e do sabão.
Nada, nem a sua origem goesa, explicava o seu fervor católico. Fora ela quem, há mais de vinte anos, conduzira Mwadia à festa de inauguração da capela. A menina, na altura, ficou encantada. Em casa, enquanto a mãe preparava o jantar, perguntou:
Gostei tanto da igreja, mãe. Não podemos fazer uma igrejinha dentro de nossa casa?
A nossa casa é tão pequena que nem nela podemos ajoelhar.
Mas, mãe, eu queria tanto...
O que faz uma igreja, Mwadinha, é o sossego que mora lá dentro.
Onde quer que deitasse o sossego a crescer, ela teria uma igreja só dela. Isso lhe prometeu Dona Constança, sua mãe.

***
Mwadia Malunga prosseguia por atalhos virgens, as pegadas sendo engolidas pela mobilidade das areias soltas. Era isso que ela requeria da caminhada: fazer com que o passado emudecesse, sem eco nem rasto. Apagar as horas e os dias, apagar as cicatrizes do passado.
No seu retiro em Antigamente, Mwadia não desejava apenas estar distante, mas ambicionava esse exílio que só se encontra quando todos de nós se esquecem. Nunca o conseguiu. As lembranças atravessavam os rios, calcorreavam a savana e nela emergiam como lava incandescente.
Porquê, Zero Madzero, por que é que eu recordo tanto?
O marido não sabia responder. Era por isso que ela lhe perguntava: por não temer a resposta. No íntimo de si, Mwadia sabia: quem se lembra tanto de tudo é porque não espera mais nada da vida.

***
Quem parte treme, quem regressa teme. Tem-se medo de se ter sido vencido pelo Tempo, medo de que a ausência tenha devorado as lembranças. A saudade é um morcego cego que falhou fruto e mordeu a noite.
À medida que se aproximava da sua vila, Mwadia ansiava recuperar o sentido de pertença a um lugar. Ela estava, a um tempo, receosa e ansiosa. As vozes e os olhares lhe iriam certamente devolver a perdida familiaridade. Nem ela adivinhava quanto os rostos de Vila Longe estavam vazios e inexpressivos, como se ela, mesmo regressando, se mantivesse ausente.
Quando entrou em Vila Longe era noite madura, nessa hora tão tardia que até o mocho pestaneja para não adormecer.
A vila era de bom tamanho, suficiente para merecer igreja e praça. Mwadia podia caminhar de olhos fechados, guiada pelo sentimento de estar vagueando por dentro do seu próprio corpo. Constrangida, foi atravessando as ruelas. O ruído dos cascos do burro era a sua única defesa contra o medo. Perfilou-se perante a velha casa e um arrepio a fez estancar. A casa da infância é como um rosto de mãe: contemplamo-lo como se já existisse antes de haver o Tempo.
Mas, mãe, eu queria tanto...
O que faz uma igreja, Mwadinha, é o sossego que mora lá dentro.
Onde quer que deitasse o sossego a crescer, ela teria uma igreja só dela. Isso lhe prometeu Dona Constança, sua mãe.

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Mwadia Malunga prosseguia por atalhos virgens, as pegadas sendo engolidas pela mobilidade das areias soltas. Era isso que ela requeria da caminhada: fazer com que o passado emudecesse, sem eco nem rasto. Apagar as horas e os dias, apagar as cicatrizes do passado.
No seu retiro em Antigamente, Mwadia não desejava apenas estar distante, mas ambicionava esse exílio que só se encontra quando todos de nós se esquecem. Nunca o conseguiu. As lembranças atravessavam os rios, calcorreavam a savana e nela emergiam como lava incandescente.
Porquê, Zero Madzero, por que é que eu recordo tanto?
O marido não sabia responder. Era por isso que ela lhe perguntava: por não temer a resposta. No íntimo de si, Mwadia sabia: quem se lembra tanto de tudo é porque não espera mais nada da vida.

***
Quem parte treme, quem regressa teme. Tem-se medo de se ter sido vencido pelo Tempo, medo de que a ausência tenha devorado as lembranças. A saudade é um morcego cego que falhou fruto e mordeu a noite.
À medida que se aproximava da sua vila, Mwadia ansiava recuperar o sentido de pertença a um lugar. Ela estava, a um tempo, receosa e ansiosa. As vozes e os olhares lhe iriam certamente devolver a perdida familiaridade. Nem ela adivinhava quanto os rostos de Vila Longe estavam vazios e inexpressivos, como se ela, mesmo regressando, se mantivesse ausente.
Quando entrou em Vila Longe era noite madura, nessa hora tão tardia que até o mocho pestaneja para não adormecer.
A vila era de bom tamanho, suficiente para merecer igreja e praça. Mwadia podia caminhar de olhos fechados, guiada pelo sentimento de estar vagueando por dentro do seu próprio corpo. Constrangida, foi atravessando as ruelas. O ruído dos cascos do burro era a sua única defesa contra o medo. Perfilou-se perante a velha casa e um arrepio a fez estancar. A casa da infância é como um rosto de mãe: contemplamo-lo como se já existisse antes de haver o Tempo.
Espera, burrinho, espera...
Bateu uma palmada no flanco do Mbongolo e encostou-se ao muro. Passou as mãos pela cal, demorou-se nas fracturas do cimento como se fossem humanas rugas: a casa envelhecera, minguara de tamanho. Lembrou-se das vezes em que, chegados ao pátio, a sua mãe avançava o braço como se agarrasse um fumo e anunciava, com voz sumida:
Parem todos! A nossa casa não está no sítio.
Antes que os restantes reagissem, Dona Constança, de mãos estendidas à frente do corpo, rondava pelo quintal e gemia:
Já foi, a casa já foi!
Incerto e sabido: após uns instantes de penar em redor do tamarindeiro, a mãe Constança convocava os familiares para que dessem as mãos e formassem um anel à volta da grande árvore.
Agora, fiquem calados e crentes que ela já volta.
Era esse ritual que permitia a casa retornar e, de novo, refazer a sua milenar raiz. Acreditaria Dona Constança nas suas aflitas miragens ou inventaria aqueles sustos para que os filhos nunca esquecessem os sagrados atributos do lar? Nunca se soube. Para Mwadia, restara a lição: as pessoas é que abrigam a casa, a ternura é que sustenta o tecto.
Pudesse a sua casa ser, como as demais, uma simples palhota de pau-a-pique, dessas que se desfazem sem ruído nem ruína. Mas a vida de Mwadia fez-se de contra-sensos: ela era do mato e nascera em casa de cimento; era preta e tinha um padrasto indiano; era bela e casara com um marido tonto; era mulher e secava sem descendência.
Mia Couto, in O outro pé da sereia

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