Por
antecipação, Mwadia deleitava-se com o espanto que a sua chegada
iria causar em Vila Longe. Quem se iria regalar com a aparição da
Santa seria a Tia Luzmina Rodrigues, a única irmã de seu padrasto.
Ela era a mais dedicada beata em Vila Longe. Dormia abraçada a
postais de santinhos e, mesmo contra a vontade do padre, dava banho
às figuras da pequena igreja. Para Luzmina tudo nascia da limpeza:
até a santidade vinha da água e do sabão.
Nada,
nem a sua origem goesa, explicava o seu fervor católico. Fora ela
quem, há mais de vinte anos, conduzira Mwadia à festa de
inauguração da capela. A menina, na altura, ficou encantada. Em
casa, enquanto a mãe preparava o jantar, perguntou:
—
Gostei tanto da igreja, mãe. Não
podemos fazer uma igrejinha dentro de nossa casa?
— A
nossa casa é tão pequena que nem nela podemos ajoelhar.
— Mas,
mãe, eu queria tanto...
— O
que faz uma igreja, Mwadinha, é o sossego que mora lá dentro.
Onde
quer que deitasse o sossego a crescer, ela teria uma igreja só dela.
Isso lhe prometeu Dona Constança, sua mãe.
***
Mwadia
Malunga prosseguia por atalhos virgens, as pegadas sendo engolidas
pela mobilidade das areias soltas. Era isso que ela requeria da
caminhada: fazer com que o passado emudecesse, sem eco nem rasto.
Apagar as horas e os dias, apagar as cicatrizes do passado.
No
seu retiro em Antigamente, Mwadia não desejava apenas estar
distante, mas ambicionava esse exílio que só se encontra quando
todos de nós se esquecem. Nunca o conseguiu. As lembranças
atravessavam os rios, calcorreavam a savana e nela emergiam como lava
incandescente.
—
Porquê, Zero Madzero, por que é que
eu recordo tanto?
O
marido não sabia responder. Era por isso que ela lhe perguntava: por
não temer a resposta. No íntimo de si, Mwadia sabia: quem se lembra
tanto de tudo é porque não espera mais nada da vida.
***
Quem
parte treme, quem regressa teme. Tem-se medo de se ter sido vencido
pelo Tempo, medo de que a ausência tenha devorado as lembranças. A
saudade é um morcego cego que falhou fruto e mordeu a noite.
À
medida que se aproximava da sua vila, Mwadia ansiava recuperar o
sentido de pertença a um lugar. Ela estava, a um tempo, receosa e
ansiosa. As vozes e os olhares lhe iriam certamente devolver a
perdida familiaridade. Nem ela adivinhava quanto os rostos de Vila
Longe estavam vazios e inexpressivos, como se ela, mesmo regressando,
se mantivesse ausente.
Quando
entrou em Vila Longe era noite madura, nessa hora tão tardia que até
o mocho pestaneja para não adormecer.
A
vila era de bom tamanho, suficiente para merecer igreja e praça.
Mwadia podia caminhar de olhos fechados, guiada pelo sentimento de
estar vagueando por dentro do seu próprio corpo. Constrangida, foi
atravessando as ruelas. O ruído dos cascos do burro era a sua única
defesa contra o medo. Perfilou-se perante a velha casa e um arrepio a
fez estancar. A casa da infância é como um rosto de mãe:
contemplamo-lo como se já existisse antes de haver o Tempo.
— Mas,
mãe, eu queria tanto...
— O
que faz uma igreja, Mwadinha, é o sossego que mora lá dentro.
Onde
quer que deitasse o sossego a crescer, ela teria uma igreja só dela.
Isso lhe prometeu Dona Constança, sua mãe.
***
Mwadia
Malunga prosseguia por atalhos virgens, as pegadas sendo engolidas
pela mobilidade das areias soltas. Era isso que ela requeria da
caminhada: fazer com que o passado emudecesse, sem eco nem rasto.
Apagar as horas e os dias, apagar as cicatrizes do passado.
No
seu retiro em Antigamente, Mwadia não desejava apenas estar
distante, mas ambicionava esse exílio que só se encontra quando
todos de nós se esquecem. Nunca o conseguiu. As lembranças
atravessavam os rios, calcorreavam a savana e nela emergiam como lava
incandescente.
—
Porquê, Zero Madzero, por que é que
eu recordo tanto?
O
marido não sabia responder. Era por isso que ela lhe perguntava: por
não temer a resposta. No íntimo de si, Mwadia sabia: quem se lembra
tanto de tudo é porque não espera mais nada da vida.
***
Quem
parte treme, quem regressa teme. Tem-se medo de se ter sido vencido
pelo Tempo, medo de que a ausência tenha devorado as lembranças. A
saudade é um morcego cego que falhou fruto e mordeu a noite.
À
medida que se aproximava da sua vila, Mwadia ansiava recuperar o
sentido de pertença a um lugar. Ela estava, a um tempo, receosa e
ansiosa. As vozes e os olhares lhe iriam certamente devolver a
perdida familiaridade. Nem ela adivinhava quanto os rostos de Vila
Longe estavam vazios e inexpressivos, como se ela, mesmo regressando,
se mantivesse ausente.
Quando
entrou em Vila Longe era noite madura, nessa hora tão tardia que até
o mocho pestaneja para não adormecer.
A
vila era de bom tamanho, suficiente para merecer igreja e praça.
Mwadia podia caminhar de olhos fechados, guiada pelo sentimento de
estar vagueando por dentro do seu próprio corpo. Constrangida, foi
atravessando as ruelas. O ruído dos cascos do burro era a sua única
defesa contra o medo. Perfilou-se perante a velha casa e um arrepio a
fez estancar. A casa da infância é como um rosto de mãe:
contemplamo-lo como se já existisse antes de haver o Tempo.
—
Espera, burrinho, espera...
Bateu
uma palmada no flanco do Mbongolo e encostou-se ao muro. Passou as
mãos pela cal, demorou-se nas fracturas do cimento como se fossem
humanas rugas: a casa envelhecera, minguara de tamanho. Lembrou-se
das vezes em que, chegados ao pátio, a sua mãe avançava o braço
como se agarrasse um fumo e anunciava, com voz sumida:
— Parem
todos! A nossa casa não está no sítio.
Antes
que os restantes reagissem, Dona Constança, de mãos estendidas à
frente do corpo, rondava pelo quintal e gemia:
— Já
foi, a casa já foi!
Incerto
e sabido: após uns instantes de penar em redor do tamarindeiro, a
mãe Constança convocava os familiares para que dessem as mãos e
formassem um anel à volta da grande árvore.
—
Agora, fiquem calados e crentes que
ela já volta.
Era
esse ritual que permitia a casa retornar e, de novo, refazer a sua
milenar raiz. Acreditaria Dona Constança nas suas aflitas miragens
ou inventaria aqueles sustos para que os filhos nunca esquecessem os
sagrados atributos do lar? Nunca se soube. Para Mwadia, restara a
lição: as pessoas é que abrigam a casa, a ternura é que sustenta
o tecto.
Pudesse
a sua casa ser, como as demais, uma simples palhota de pau-a-pique,
dessas que se desfazem sem ruído nem ruína. Mas a vida de Mwadia
fez-se de contra-sensos: ela era do mato e nascera em casa de
cimento; era preta e tinha um padrasto indiano; era bela e casara com
um marido tonto; era mulher e secava sem descendência.
Mia
Couto, in O outro pé da sereia
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