No
portão, junto ao caminho, Lázaro Vivo despedia-se, distribuindo as
bênçãos, quando Mwadia reparou que Zero Madzero sangrava. Pequenas
gotas vermelhas despontavam no pescoço como botões de flores, essas
mesmas que deflagravam nas águas do banho do burriqueiro.
Para
Mwadia a origem dos ferimentos era simples: o marido roçara a micaia
junto à vedação. Nem ela queria que Madzero viesse com a conversa
das guelras. Mas para o curandeiro o assunto era de maior alarme:
quem ferira Zero tinha sido a maldição do missionário. Sombra
silenciosa, uma águia descera em voo picado e atacara o burriqueiro.
Ninguém vira porque ela lhe entrara no corpo e o bicara por dentro.
— Uma
águia? Sabe, compadre Lázaro, eu já começo a ficar cansada...
— Você
não acredita, não é?, inquiriu Lázaro, em tom grave.
— Tenho
outras crenças.
— Pois
aqui não precisa de acreditar, minha filha. Basta viver. Veja o
sangue no peito do seu marido. Veja.
Não
era o momento para mastigar conversa. Lázaro entrou em casa,
anunciando que ia buscar apropriado remédio. Madzero não podia
entrar: ali estava o sangue, o vivo vermelho desafiando os espíritos.
O adivinho trouxe um pano molhado e mandou que Mwadia lavasse as
feridas de Madzero.
—
Lave-o a ele e lave-se a si também.
Ficaram
em silêncio, sentados, como que esperando o desabar do destino. Até
que o adivinho se ergueu e sentenciou:
— Vamos
ao rio.
— Ao
rio? Eu quero é regressar a casa, tratar do meu marido...
— Minha
amiga, o seu marido está sofrendo perigos que nenhuma casa nem
esposa podem dar proteção...
Todo
o caminho o curandeiro bufou, espirrou, soprou maldições, limpou o
suor com um lenço branco. Quando, por fim, chegaram à margem do
Mussengueze, o fatigado Lázaro ordenou:
—
Agora, compadre: meta as mãos na
água!
— Para
quê?
— Faça.
O
burriqueiro, a medo, mergulhou os braços na corrente. De imediato, a
água tingiu-se de vermelho. O pastor, assustado, olhou as mãos e
gemeu:
— Estou
sangrando tanto?
— Não
é você que está sangrando, explicou o nyanga. Esse sangue
já estava lá, adormecido no rio. Você apenas o despertou.
O
curandeiro puxou as mangas de Zero e inspecionou-lhe os pulsos.
Certificava-se de que nenhum objeto de metal havia tocado as águas.
Se isso tivesse sucedido o rio poderia secar. Depois, virando-se para
o burriqueiro, Lázaro sentenciou:
— E
agora lhe digo uma coisa: Você corre grande perigo.
— Não
diga isso, compadre, meu coração é uma sombra. O que devo fazer?
— Você
tem que levar essa Santa para um lugar sagrado.
— Mas
para onde? Para junto do rio, de onde a tirei?
— Para
aí nunca!
— Mas
você não disse que esse lugar é sagrado?
— Era.
Já não é.
Tinha
sido o casal que conspurcara o lugar. Sem rodeios, o adivinho
sentenciou que a Santa fosse levada para Vila Longe, o mais rápido
possível.
— Eu
não disse?, interrompeu Madzero
que, a seguir, se dirigiu a Lázaro: Você acha que posso
ir à Vila?
Mwadia
interpôs-se e interferiu, em defesa do marido:
— Nem
pensar, Zero não pode voltar a Vila Longe.
A
decisão, em Mwadia, já tinha sido tomada. Ela mesma iria à vila em
representação do marido.
Mia
Couto, in O outro pé da sereia
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