Gostaria
de me insinuar sub-repticiamente no discurso que devo pronunciar
hoje,e nos que deverei pronunciar aqui, talvez durante anos. Ao invés
de tomar a palavra, gostaria de ser envolvido por ela e levado bem
além de todo começo possível. Gostaria de perceber que no momento
de falar uma voz sem nome me precedia há muito tempo: bastaria,
então, que eu encadeasse, prosseguisse a frase, me alojasse, sem ser
percebido, em seus interstícios. Como se ela me houvesse dado um
sinal, mantendo-se, por um instante, suspensa. Não haveria,
portanto, começo; e em vez de ser aquele de quem parte o discurso, eu
seria, antes, ao acaso de seu desenrolar, uma estreita lacuna, o
ponto de seu desaparecimento possível.
Gostaria
de ter atrás de mim (tendo tomado a palavra há muito tempo,
duplicando de antemão tudo o que vou dizer) uma voz que dissesse: “É
preciso continuar, eu não posso continuar, é preciso continuar, é
preciso pronunciar palavras enquanto as há, é preciso dizê-las até
que elas me encontrem, até que me digam - estranho castigo, estranha
falta, é preciso continuar, talvez já tenha acontecido, talvez já
me tenham dito, talvez me tenham levado ao limiar de minha história,
diante da porta que se abre sobre minha história, eu me
surpreenderia se ela se abrisse”.
Existe
em muita gente, penso eu, um desejo semelhante de não ter de
começar, um desejo de se encontrar, logo de entrada, do outro lado
do discurso, sem ter de considerar do exterior o que ele poderia ter
de singular, de terrível, talvez de maléfico. A essa aspiração
tão comum, a instituição responde de modo irônico; pois que toma
os começos solenes, cerca-os de um círculo de atenção e de
silêncio, e lhes impõe formas ritualizadas, como para sinalizá-los
à distância.
O
desejo diz: “Eu não queria ter de entrar nesta ordem arriscada do
discurso; não queria ter de me haver com o que tem de categórico e
decisivo; gostaria que fosse ao meu redor como uma transparência
calma, profunda, indefinidamente aberta, em que os outros
respondessem à minha expectativa, e de onde as verdades se elevassem
uma a uma; eu não teria senão de me deixar levar nela e por ela,
como um destroço feliz”. E a instituição responde: “Você não
tem por que temer começar; estamos aí para lhe mostrar que o
discurso está na ordem das leis; que há muito tempo se cuida de sua
aparição; que lhe foi preparado um lugar que o honra, mas o
desarma; e que, se lhe ocorre ter algum poder, é de nós, que ele
lhe advém”.
Mas
pode ser que essa instituição e esse desejo não sejam outra coisa
senão duas réplicas opostas a uma mesma inquietação: inquietação
diante do que é o discurso em sua realidade material de coisa
pronunciada ou escrita; inquietação diante dessa existência
transitória destinada a se apagar sem dúvida, mas segundo uma
duração que não nos pertence; inquietação de sentir sob essa
atividade, todavia cotidiana e cinzenta, poderes e perigos que mal se
imagina; inquietação de supor lutas, vitórias, ferimentos,
dominações, servidões, através de tantas palavras cujo uso há
tanto tempo reduziu as asperidades. Mas, o que há, enfim, de tão
perigoso no fato de as pessoas falarem e de seus discursos
proliferarem indefinidamente? Onde, afinal, está o perigo?
Michel
Foucault, in A ordem do discurso
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