domingo, 12 de novembro de 2017

A um passo do ridículo

Os outros acontecimentos daquela noite tiveram efeito mais perdurável. Voltei a ler várias vezes o Tratado do Lobo da Estepe, já com abnegação e agradecimento como se um mago invisível estivesse dirigindo prudentemente o meu destino, já com desprezo e desdém pela insipidez do tratado que, a meu ver, não compreendia em absoluto a disposição e o transe específicos de minha vida. O que ali estava escrito sobre os lobos da estepe e os suicidas era, sem dúvida, muito bom e judicioso, caracterizava bem a espécie e o tipo, mas era uma rede de malhas muito largas para apanhar o meu ser individual, meu destino único e insubstituível. Todavia, o que mais me ocupava o pensamento era aquela alucinação ou visão do muro da igreja, a advertência cheia de promessas daquelas letras luminosas, que concordavam com o significado do tratado. Muito me estava prometido ali, as vozes daquele estranho mundo acicatavam-me a curiosidade; nelas pensei profundamente durante longas horas. E a advertência daquela inscrição me falava cada vez mais claramente: “Só para os raros!” “Só para loucos!'” Louco eu devia ser e sem dúvida era um dos “raros”, senão aquela voz não me teria alcançado, senão aquele mundo não me teria o que dizer. Meu Deus, não estava, há bastante tempo, afastado da vida comum, da existência e do pensamento dos normais, não estava, há muito, mais do que suficientemente solitário e louco? E, no entanto, compreendi muito bem no íntimo do meu ser o chamado, o convite à loucura, o alijamento da razão, a escapada aos estorvos da convenção para entregar-me a um mundo flutuante e anárquico, da alma e da fantasia. Uma tarde, após percorrer em vão as ruas e praças em busca do homem do cartaz e após haver passado e tornado a passar diante do muro da porta invisível, acabei dando com um cortejo fúnebre em São Martim. Enquanto examinava a face dos que acompanhavam o carro fúnebre, fiquei pensando: Em que parte da cidade, em que parte do mundo vive o homem cuja morte significará uma perda para mim? E onde estará o homem para quem minha morte há de significar algo? Havia Erika, é verdade, mas há muito que vivíamos separados; raramente nos víamos sem que brigássemos, e por ora nem sequer sabia de seu paradeiro. Vinha às vezes ver-me ou ia ao seu encontro, e embora ambos fôssemos pessoas solitárias e difíceis, aparentadas na alma e nas suas enfermidades, havia entre nós certos laços que persistiam apesar de tudo. Mas, não haveria de respirar fundo e sentir-se um tanto aliviada, ao ter conhecimento de minha morte? Não sabia. Também nada sabia sobre a autenticidade de meus próprios sentimentos. É preciso que se viva no normal e no possível para que saiba algo destas coisas. Enquanto isso, seguindo meu capricho, juntei-me ao cortejo fúnebre e caminhei ao lado dos acompanhantes até o cemitério, uma necrópole moderna, de cimento, dotada de cernatório e de todos os requisitos imagináveis. Nosso defunto, entretanto, não foi cremado. Descarregaram o caixão junto a uma simples cova aberta no solo, e vi o padre e os outros abutres da morte mais os agentes funerários executarem suas funções, procurando revesti-las de alta solenidade e de tristeza; sua teatralidade, confusão e fingimento eram tais que ficavam a um passo do ridículo. Vi como suas vestes negras caíam-lhes flutuantes dos ombros e como se esforçavam por imitar a tristeza dos parentes e em dobrar o joelho diante da majestade da morte. Tal afã era inútil, pois ninguém chorava, o morto não parecia insubstituível para quem quer que fosse. Ninguém parecia disposto a piedosas reflexões, e quando o padre se dirigiu à comitiva chamando a todos de “meus irmãos em Cristo”, silenciosos e mercantis aqueles negociantes e quitandeiros acompanhados de suas mulheres baixaram os olhos com muita seriedade, embaraçados e perplexos, movidos apenas pelo desejo de que tudo aquilo acabasse o quanto antes. Quando parecia ter chegado o fim, os dois irmãos em Cristo que estavam na frente apertaram a mão do orador e limparam os sapatos numa moita tirando-lhes o barro úmido em que fora sepultado o morto; logo os rostos voltaram a ficar imediatamente naturais e humanos e um deles me pareceu de repente conhecido; era, segundo imaginei, o homem que naquele dia carregava o cartaz, o mesmo que me entregou aquele pequeno livro. Naquele instante, como me parecesse havê-lo reconhecido, o homem se voltou, agachou-se, deteve-se a baixar a bainha das calças de fazenda negra, que trazia arregaçadas sobre os sapatos, e afastou-se às pressas dali, com um guarda-chuva pendurado ao braço. Saí atrás dele, alcancei-o, cumprimentei-o com a cabeça, mas ele pareceu não me reconhecer.
Hermann Hesse, in O Lobo da Estepe

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