sábado, 7 de outubro de 2017

Teosofia

Positivamente não era meu dia para teosofia. E não vê que tomo um táxi com um chofer que, a propósito de apenas simpatia por mim, creio, me dá uma lição teosófica. Mais materialista do que eu estava não podia. O chofer – um senhor de cabelos brancos, ar distinto e bonito – falava e eu não ouvia. Ouvi quando falou em irmandade e então reagi de um modo estranho: não me senti irmã de ninguém no mundo. Eu estava sozinha. Mas houve uma coisa que me chamou atenção porque é minha também, mesmo num dia de puro materialismo. Como explicar? Ele disse que o nosso ciclo no mundo já acabou e que não estamos preparados para esse fim, que o ano dois mil já chegou. Prestei atenção. Para mim também o ano dois mil é hoje. Sinto-me tão avançada, mesmo que não possa exprimi-lo, que estou em outro ciclo, mesmo que não possa exprimi-lo. Inclusive sinto-me muito além de escrever. Marciana? Não. Pouco quero saber. E o ano dois mil já chegou, mas não por causa de Marte: por causa da Terra mesmo, de nós, por nossa voracidade do tempo que nos come. Só em matéria de fome é que não estamos no ano dois mil. Mas há vários tipos de fome: estou falando de todas. E a fome, não de comida, é tanta que engolimos não sei quantos anos e ultrapassamos o dois mil. O que eu já aprendi com os choferes de táxi daria para um livro.
Eles sabem muita coisa: literalmente circulam. Quanto a Antonioni eu sei, e eles não sabem. Se bem que talvez, mesmo ignorando-o. Há vários modos de saber, ignorando. Conheço isso: acontece comigo também.
Clarice Lispector, in A descoberta do mundo

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