Positivamente
não era meu dia para teosofia. E não vê que tomo um táxi com um
chofer que, a propósito de apenas simpatia por mim, creio, me dá
uma lição teosófica. Mais materialista do que eu estava não
podia. O chofer – um senhor de cabelos brancos, ar distinto e
bonito – falava e eu não ouvia. Ouvi quando falou em irmandade e
então reagi de um modo estranho: não me senti irmã de ninguém no
mundo. Eu estava sozinha. Mas houve uma coisa que me chamou atenção
porque é minha também, mesmo num dia de puro materialismo. Como
explicar? Ele disse que o nosso ciclo no mundo já acabou e que não
estamos preparados para esse fim, que o ano dois mil já chegou.
Prestei atenção. Para mim também o ano dois mil é hoje. Sinto-me
tão avançada, mesmo que não possa exprimi-lo, que estou em outro
ciclo, mesmo que não possa exprimi-lo. Inclusive sinto-me muito além
de escrever. Marciana? Não. Pouco quero saber. E o ano dois mil já
chegou, mas não por causa de Marte: por causa da Terra mesmo, de
nós, por nossa voracidade do tempo que nos come. Só em matéria de
fome é que não estamos no ano dois mil. Mas há vários tipos de
fome: estou falando de todas. E a fome, não de comida, é tanta que
engolimos não sei quantos anos e ultrapassamos o dois mil. O que eu
já aprendi com os choferes de táxi daria para um livro.
Eles
sabem muita coisa: literalmente circulam. Quanto a Antonioni eu sei,
e eles não sabem. Se bem que talvez, mesmo ignorando-o. Há vários
modos de saber, ignorando. Conheço isso: acontece comigo também.
Clarice
Lispector, in A descoberta do mundo
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