Sinto
em mim que há tantas coisas sobre o que escrever. Por que não? O
que me impede? A exiguidade do tema talvez, que faria com que este se
esgotasse em uma palavra, em uma linha. Às vezes é o horror de
tocar numa palavra que desencadearia milhares de outras, não
desejadas, estas. No entanto, o impulso de escrever. O impulso puro –
mesmo sem tema. Como se eu tivesse a tela, os pincéis e as cores –
e me faltasse o grito de libertação, ou a mudez essencial que é
necessária para que se digam certas coisas. Às vezes a minha mudez
faz com que eu procure pessoas que, sem elas saberem, me darão a
palavra-chave. Mas quem? quem me obriga a escrever? O mistério é
esse: ninguém, e no entanto a força me impelindo.
Eu
já quis escrever o que se esgotaria em uma linha. Por exemplo, sobre
a experiência de ser desorganizada, e de repente a pequena febre de
organização que me toma como a de uma antiga formiga. É como se o
meu inconsciente coletivo fosse o de uma formiga.
Eu
também queria escrever, e seriam duas ou três linhas, sobre quando
uma dor física passa. De como o corpo agradecido, ainda arfando, vê
a que ponto a alma é também o corpo.
E
é como se eu fosse escrever um livro sobre a sensação que tive uma
vez que passei vários dias em casa muito gripada – e quando saí
fraca pela primeira vez à rua, havia sol cálido e gente na rua. E
de como me veio uma exclamação entre infantil e adulta: ah, como os
outros são bonitos. É que eu vinha do escuro meu para o claro que
também descobria que era meu, é que eu vinha de uma solidão de
pessoas para o ser humano que movia pernas e braços e tinha
expressões de rosto.
Também
seria inesgotável escrever sobre beber mal. Bebo depressa demais, e
não há alternativas: ou praticamente adormeço dentro de mim e fico
morosa, pensativa sem que um pensamento se esclareça como
descoberta, ou fico excitada dizendo tolices do maior brilho
instantâneo. Mas – mas há um instante mínimo nesse estado em que
simplesmente sei como é a vida, como eu sou, como os outros são,
como a arte deveria ser, como o abstracionismo por mais abstrato não
é abstrato. Esse instante só não vale a pena porque esqueço tudo
depois, quase na hora. É como se o pacto com Deus fosse este: ver e
esquecer, para não ser fulminado pelo saber.
E
às vezes, por mais absurdo, acho lícito escrever assim: nunca se
inventou nada além de morrer. E me acrescento: deve ser um gozo
natural, o de morrer, pois faz parte essencial da natureza humana,
animal e vegetal, e também as coisas morrem. E, como se houvesse
ligação com essa descoberta, vem a outra óbvia e espantosa: nunca
se inventou um modo diferente de amor de corpo que é estranho e
cego. Cada um vai naturalmente em direção à reinvenção da cópia,
que é absolutamente original quando realmente se ama. E de novo
volta o assunto morrer. E vem a ideia de que, depois de morrer, não
se vai ao paraíso, morrer é que é o paraíso.
A
verdade é que simplesmente me faltou o dom para a minha verdadeira
vocação: a de desenhar. Porque eu poderia, sem finalidade nenhuma,
desenhar e pintar um grupo de formigas andando ou paradas – e
sentir-me inteiramente realizada nesse trabalho. Ou desenharia linhas
e linhas, uma cruzando a outra, e me sentiria toda concreta nessas
linhas que os outros talvez chamassem de abstratas.
Eu
também poderia escrever um verdadeiro tratado sobre comer, eu que
gosto de comer e no entanto não como tanto. Terminaria sendo um
tratado sobre a sensualidade, não especificamente a de sexo, mas a
sensualidade de “entrar em contato” íntimo com o que existe,
pois comer é uma de suas modalidades – e é uma modalidade que
engage de algum modo o ser inteiro.
Também
escreveria sobre rir do absurdo de minha condição. E ao mesmo tempo
mostrar como ela é digna, e usar a palavra digna me faz rir
de novo.
Eu
falaria sobre frutas e frutos. Mas como quem pintasse com palavras.
Aliás,
verdadeiramente, escrever não é quase sempre pintar com palavras?
Ah, estou cheia de temas que jamais abordarei. Vivo deles, no
entanto.
Clarice
Lispector, in Aprendendo a viver
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