Nancy Cunard em foto de 1928
Decidimos
com Nancy Cunard fazer uma publicação de poesia que intitulei Los
poetas del mundo defiendem al pueblo español.
Nancy
tinha uma pequena gráfica em sua casa de campo, na província
francesa. Não me lembro do nome da localidade mas era longe de
Paris. Quando chegamos à sua casa já era noite. Havia lua. A neve e
a lua estremeciam como uma cortina ao redor da propriedade. Eu,
entusiasmado, saí para passear. Na volta os flocos de neve
amontoaram-se sobre minha cabeça com gelada obstinação. Perdi
completamente o rumo e andei meia hora às tontas na brancura da
noite.
Nancy
tinha experiência de gráfica. Quando tinha sido companheira de
Aragon, publicou a tradução do “Huting of the Snark”,
feita por Aragon e por ela. Na verdade este poema de Lewis Carroll é
intraduzível e creio que só em Góngora acharíamos um trabalho
semelhante de mosaico louco.
Pus-me
pela primeira vez a lidar com os tipos e acho que nunca houve um
tipógrafo pior. Como eu imprimia as letras p ao contrário, ficavam
convertidas em d por minha incompetência tipográfica. Um verso em
que aparecia duas vezes a palavra párpados acabou convertido em duas
vezes dardapos. Por vários anos Nancy me castigou chamando-me dessa
maneira. “My dear Dardapo...”, assim começavam suas
cartas vindas de Londres. Mas a publicação saiu muito correta e
conseguimos imprimir seis ou sete números. Além de poetas
militantes, como González Tuñón ou Alberti, ou alguns franceses,
publicamos apaixonados poemas de W. H. Auden, Spender, etc. Estes
cavalheiros ingleses não saberão nunca o que sofreram meus dedos
preguiçosos compondo seus versos.
De
quando em vez chegavam da Inglaterra poetas dandys, amigos de Nancy,
com flor branca na lapela, que também escreviam poemas
antifranquistas. Não houve na história intelectual uma essência
tão fértil para os poetas como a guerra espanhola. O sangue
espanhol exerceu um magnetismo que fez tremer a poesia de uma grande
época.
Não
sei se a publicação teve êxito ou não porque por esse tempo
terminou mal a guerra da Espanha e começou mal outra nova guerra
mundial. Esta última, apesar de sua magnitude, apesar de sua
crueldade incomensurável, apesar de seu heroísmo derramado, não
conseguiu nunca envolver como a espanhola o coração coletivo da
poesia.
Pouco
depois teria que regressar da Europa para meu país. Nancy também
viajaria logo para o Chile, acompanhada por um toureiro que em
Santiago deixou os touros e Nancy Cunard para instalar uma venda de
salsichas e outros chouriços. Mas minha queridíssima amiga, esnobe
da mais alta qualidade, era invencível. No Chile tomou como amante
um poeta vagabundo e desalinhado, chileno de origem basca, não
desprovido de talento mas sim de dentes. Além disso, o novo favorito
de Nancy era um beberrão e dava na aristocrática inglesa frequentes
surras noturnas que a obrigavam a aparecer em público com grandes
óculos escuros.
Na
verdade ela foi um dos personagens quixotescos, crônicos, valentes e
patéticos mais curiosos que eu já conheci. Herdeira única da
“Cunard Line”, filha de Lady Cunard, Nancy escandalizou
Londres lá pelo ano de 1930, fugindo com um negro, músico de um dos
primeiros jazz bands importados pelo Hotel Savoy.
Quando
Lady Cunard encontrou a cama vazia de sua filha e uma carta dela em
que comunicava orgulhosamente seu negro destino, a nobre senhora
dirigiu-se ao advogado e iniciou o processo para deserdá-la. Assim,
pois, o que conheci, errante pelo mundo, foi uma preterida da
grandeza britânica. O salão da mãe era freqüentado por Georges
Moore (de quem se sussurrava que era o verdadeiro pai de Nancy), Sir
Thomas Beecham, o jovem Aldous Huxley e o que depois foi o Duque de
Windsor, então Príncipe de Gales.
Nancy
Cunard revidou o golpe. Em dezembro do ano em que foi excomungada por
sua mãe, toda a aristocracia inglesa recebeu como presente de Natal
um folheto de capa vermelha intitulado Negro man and white Ladyship.
Não vi nada mais corrosivo, atingindo às vezes a malignidade de
Swift.
Seus
argumentos em defesa dos negros foram como uma paulada na cabeça de
Lady Cunard e da sociedade inglesa. Lembro o que lhes dizia e cito de
memória porque suas palavras eram mais eloquentes:
“Se
você, branca Senhora, ou melhor, os seus tivessem sido sequestrados,
golpeados e acorrentados por uma tribo mais poderosa e depois
transportados para longe da Inglaterra para serem vendidos como
escravos, mostrados como exemplos irrisórios da fealdade humana,
obrigados a trabalhar debaixo de chicotadas e mal alimentados, que
teria subsistido de sua raça? Os negros sofreram estas violências e
crueldades e muitas mais. Depois de séculos de sofrimento, eles no
entanto são os melhores e mais elegantes atletas e criaram uma nova
música mais universal que nenhuma outra. Poderiam vocês, brancos
como você é, ter saído vitoriosos de tanta iniquidade? Então:
quem vale mais?”
E
assim por trinta páginas.
Nancy
não pôde voltar a morar na Inglaterra e desde esse momento abraçou
a causa da raça negra perseguida. Durante a invasão da Etiópia foi
a Adis Abeba. Depois chegou aos Estados Unidos para solidarizar-se
com os rapazes negros de Scottsboro acusados de infâmias que não
cometeram. Os jovens negros foram condenados pela justiça racista
norte-americana e Nancy foi expulsa pela polícia democrática
norte-americana.
Em
1969 minha amiga Nancy Cunard morreria em Paris. Numa crise de sua
agonia desceu quase nua pelo elevador do hotel. Ali desfaleceu e
fecharam-se para sempre seus belos olhos azuis.
Pesava
trinta e cinco quilos quando morreu. Era só um esqueleto. Seu corpo
tinha se consumido numa longa batalha contra a injustiça no mundo.
Não recebeu outra recompensa além de uma vida cada vez mais
solitária e uma morte desamparada.
Pablo
Neruda, in Confesso que vivi
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