sexta-feira, 6 de outubro de 2017

Maldita e condenada Justina

Sobre os campos do vale de Comala, está caindo a chuva. Uma chuva miúda, estranha para estas terras que só sabem de aguaceiros. É domingo. De Apango desceram os índios com seus rosários de camomila, seu alecrim do campo, seus punhados de tomilho. Não trouxeram nós de pinho porque o pinho está molhado, e nem terra de azinheira porque também está molhada pelo muito chover. Estendem suas ervas no chão, debaixo dos arcos da entrada do povoado, e esperam.
A chuva continua caindo sobre as poças.
Entre os sulcos, onde está nascendo o milho, corre a água em rios. Os homens não vieram hoje ao mercado, ocupados em romper os sulcos para que a água busque novos leitos e não arraste o milho verde. Andam em grupos, navegando na terra alagada, debaixo da chuva, quebrando com suas pás os torrões macios, atando com as mãos o milho verde e procurando protegê-lo para que cresça sem trabalho.
Os índios esperam. Sentem que é um dia de maus agouros. Talvez por isso tremem debaixo de suas molhadas vestimentas de palha; não de frio, mas de temor. E olham a chuva esfarelada e o céu que não larga suas nuvens.
Ninguém vem. O povoado parece estar só. Uma mulher encomendou um pouco de linha de costura e algo de açúcar, e se fosse possível, e se houvesse, uma peneira para coar o cauim de milho verde. A palha que vestem fica pesada de umidade conforme se aproxima o meio-dia. Conversam, contam piadas e soltam o riso. As camomilas brilham salpicadas pelo orvalho. Pensam: “Se pelo menos tivéssemos trazido um bocadinho de cauim de cacto não teria importância; mas os brotos dos cactos maguey viraram um mar de água. Enfim, fazer o quê?”
Justina Díaz, coberta por um guarda-chuva, vinha pela rua direita que vem da Media Luna, rodeada pelos jorros que borbotavam na calçada. Fez o sinal da cruz e se persignou ao passar pela porta da igreja matriz. Cruzou a entrada principal do povoado. Os índios viraram-se para vê-la. Viu o olhar de todos, como se a esquadrinhassem. Deteve-se na primeira banca do mercado, comprou dez centavos de ramos de alecrim e regressou, seguida pelos olhares enfileirados daquele montão de índios.
Tudo está caro demais neste tempo” disse ao tomar de novo o caminho rumo à Media Luna. “Este raminho triste de alecrim do campo, 10 centavos. Não vai dar nem para perfumar nada.”
Os índios levantaram suas bancas quando escureceu. Entraram na chuva com seus pesados cestos às costas; passaram pela igreja para rezar à Virgem, deixando um punhado de tomilho de esmola. Depois tomaram o rumo de Apango, de onde tinham vindo. “Então será outro dia”, disseram. E pelo caminho iam contando piadas e soltando gargalhadas.
Justina Díaz entrou no dormitório de Susana San Juan e pôs o raminho de alecrim do campo na prateleira. As cortinas fechadas impediam a passagem da luz, e naquela escuridão só via sombras, só adivinhava. Supôs que Susana San Juan estaria dormindo; ela desejava sempre que estivesse dormindo. Sentiu que ela dormia e se alegrou. Mas então ouviu um suspiro distante, como se saído de algum canto daquele cômodo escuro.
Justina! — disseram a ela.
Ela virou a cabeça. Não viu ninguém; mas sentiu uma mão sobre seu ombro e a respiração em seus ouvidos. A voz em segredo: “Saia daqui, Justina. Arrume suas coisas e vá embora. Não precisamos mais de você.”
Ela sim, precisa — disse, endireitando o corpo. — Está doente e precisa de mim.
Já não mais, Justina. Eu ficarei aqui para cuidar dela.
É o senhor, dom Bartolomé? — e não esperou pela resposta. Lançou aquele grito que caiu em cima dos homens e mulheres que voltavam dos campos e fez com que dissessem: “Parece ser um uivo humano; mas não parece ser de nenhum ser humano.”
A chuva amortece os ruídos. Continua-se ouvindo mesmo depois de tudo, granizando suas gotas, fiando o fio da vida.
O que é que você tem, Justina? Por que está gritando? — perguntou Susana San Juan.
Eu não gritei, Susana. Você deve ter sonhado.
Já disse a você que eu não sonho nunca. Você não tem consideração por mim. Não dormi quase nada. Ontem à noite você não pôs o gato para fora, e ele não me deixou dormir.
Ele dormiu comigo, entre as minhas pernas. Estava ensopado e eu de pena deixei que ficasse na minha cama; mas não fez barulho.
Não, não fez barulho. Ele só passou a noite brincando de circo, pulando em mim dos pés à cabeça, e miando quietinho como se tivesse fome.
Pois eu fiz ele comer bem e não desgrudou de mim a noite inteira. Você está de novo sonhando mentiras, Susana.
Estou dizendo que passou a noite me assustando com seus pulos. E mesmo que o seu gato seja muito carinhoso, não quero saber dele quando estou dormindo.
Você vê coisas, Susana. Isso é o que acontece. Quando Pedro Páramo vier vou dizer a ele que não aguento mais você. Vou dizer que vou embora. Não vai faltar gente que seja boa e que me dê trabalho. Nem todos são maníacos que nem você, nem vivem atormentando a gente que nem você. Amanhã eu vou-me embora e levo o gato e você fica tranquila.
Você não vai embora daqui, maldita e condenada Justina. Não vai a lugar nenhum porque nunca vai encontrar quem goste de você como eu.
Não, Susana, não vou. Não vou. Você sabe muito bem que estou aqui para cuidar de você. Mesmo que você me faça blasfemar, vou cuidar de você para sempre.
Tinha cuidado dela desde que Susana nasceu. Tinha segurado em seus braços. Tinha ensinado a andar. A dar aqueles passos que para ela pareciam eternos. Tinha visto crescer sua boca e seus olhos “feitos de doces”. “O doce de menta é azul. Amarelo e azul. Verde e azul. Mexido com menta e hortelã.” Mordia as suas pernas. Divertia Susana dando-lhe de mamar seus seios, que não tinham nada, que eram como de brinquedo. “Brinca” dizia a ela “brinca com este seu brinquedinho”. Esses abraços, e tão apertados, poderiam ter despedaçado Susana.
Lá fora ouvia-se o cair da chuva sobre as folhas das bananeiras, sentia-se como se a água estancada fervesse sobre a terra.
Os lençóis estavam frios de umidade. Os canos borbotavam, faziam espuma, cansados de trabalhar durante o dia, durante a noite, durante o dia. A água continuava correndo, diluviando em incessantes borbulhas.
Juan Rulfo, Pedro Páramo

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