Do
balcão do sobrado vi bolas e bonecas de plástico cobrindo a rua de
pedras da minha infância. E quase ao mesmo tempo vi crianças da
minha idade disputando esses dois brinquedos universais. Brinquedos
de graça, que alegravam também as mães pobres da cidade.
Na
manhã amarela ouvi pela primeira vez a palavra “eleições”. Não
sabia o significado exato dessa palavra; sabia que o candidato ao
governo distribuía milhares de brinquedos às crianças, depois ele
as abraçava, beijava mães, tias e avós, era uma festa colorida num
novembro distante, que agora recordo sem nostalgia.
Depois
o candidato continuou sua campanha festiva e caridosa em outros
bairros… Não o vi naquela manhã, apenas divisei, de relance, um
bigode espesso, como se vê o desenho de um urubu minúsculo no canto
de um mural colorido. Foi o primeiro bigode político que vi na
infância, um bigode jovem, um bigode que já era um líder regional,
quase tão onipresente quanto um pequeno deus, pois ouvíamos sua voz
no rádio e víamos seu rosto em cartazes pregados em muros, fachadas
e cercas.
Quatro
anos depois vi de novo bolas e bonecas na carroceria de um caminhão,
e outras crianças disputando esses brinquedos, e o mesmo bigode
beijando e abraçando mães, tias, avós.
Em
1964, um parente me disse que esse líder tinha sido cassado, embora
não fosse de esquerda nem de direita. Afirmar que era um político
de centro é apenas um culto à simetria. Outras vozes comentaram:
foi cassado por corrupção. E mesmo aos doze anos de idade, essas
palavras ainda não tinham um significado claro para mim. O fato é
que todos nós perdemos o bigode de vista. Não foi exilado, mas
viveu no ostracismo, que é uma espécie de exílio na própria
pátria.
Quando
voltou à cidade, dizem que foi recebido com júbilo pelas crianças
que agora eram filhos das crianças que eu tinha visto na minha
infância. Não o vi depois desse retorno glorioso, porque eu já
morava muito longe da cidade. Parece que era vingativo e cruel com
inimigos, terrível com amigos que o traíam e com desconhecidos que
flertavam com as mulheres de seu harém: as meninas que tinham
recebido bonecas das mãos dele e agora eram moças feitas. Mas esse
homem, que destruía seus inimigos, também erguia grandes obras.
Construiu na floresta uma central elétrica movida a óleo diesel: um
desastre ambiental e um fiasco energético; construiu maternidades
onde as mães recebiam afagos e os recém-nascidos ganhavam bolas e
bonecas com as quais brincariam nos próximos anos; construiu escolas
e hospitais, pavimentou ruas; cada obra pública inaugurada por ele
recebia seu próprio nome, seguido de um algarismo romano, como se
fosse um rei. E, como fazia um dos reis de Shakespeare — que se
disfarçava de soldado para conhecer de perto seu exército —, ele
se disfarçava de enfermeiro, de professor, de carcereiro e andava
por escolas, hospitais e presídios; depois advertia funcionários
incompetentes, faltosos, levianos e demitia os que falavam mal dele.
Também demitia os líderes grevistas, os diretores de escolas que
não o bajulavam, os funcionários que o desprezavam, todos ingratos,
ele dizia. Por tudo isso, ele se considerava um democrata exemplar.
Mesmo
de longe, eu acompanhava sua gloriosa ascensão política. Anos
depois, ao visitar minha cidade, andei por bairros que desconhecia,
onde vi casebres à margem de rios com cor de ferrugem, e crianças
brincando com bolas e bonecas de plástico em imensas crateras de
aspecto lunar; vi fileiras de casinhas de alvenaria construídas em
áreas desmatadas, pareciam casas de boneca ou canis que brilhavam ao
sol como buquês de fogo. Vi escolas mal ventiladas, sem biblioteca,
cujas fachadas feias tinham sido apedrejadas por vândalos. Nenhuma
creche. E, mesmo assim, ele era reeleito e idolatrado…
Às
vezes a passagem do tempo é imperceptível como uma distração.
Quando me dei conta, tinham passado mais de quarenta anos. E, quando
voltava à cidade, lá estavam os cartazes e outdoors com o rosto
dele, e em qualquer estação de rádio a mesma voz com o tom
assertivo e triunfante de um animal político que ignora a dúvida, o
diálogo, a humildade.
Durante
quase meio século nunca vi o rosto dele, só via as imagens e me
lembrava do bigode: o diminuto urubu em algum mural do passado, que
agora parecia um pesadelo da infância.
Há
pouco tempo soube que ele estava num hospital de São Paulo, onde se
internam os grandes líderes doentes da minha cidade. O encontro
breve foi uma coincidência. Andava por um corredor quando de repente
parei na porta do quarto e divisei o homem deitado, olhando vagamente
para a tela de um aparelho de TV silencioso. Das quatro gerações de
mulheres de seu harém, nenhuma estava ao lado dele. Vi, enfim, o
rosto que não me viu nem podia me ver. Não usava mais bigode e, no
olhar perdido na tela muda, não havia mais fulgor nem ambição nem
ódio.
Dizem
que foi enterrado com pompa na nossa cidade e que em sua lápide está
gravada essa frase singela: Nenhum outro homem público amou tanto as
crianças desta terra.
Milton
Hatoum, in Um solitário à espreita
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