Toda vida humana é
destino em estado impuro. A mulher de novo baralhou e foi compondo na
toalha, lâmina a lâmina, os 22 arcanos do Taro — dito o livro
revelador, de páginas soltas, que os ciganos trouxeram do Egito. A
estrela, o imperador, a roda-da-fortuna, o diabo, por exemplo. —
“Não entendo, não percebo” — tugiu, e juntou as mãos,
grossas curtas, bem brancas: o consultante observando-a com as de
aluno. — “Salve-me, mas depressa. Acho que vou crer na
senhora.” Ele respirou, boca aberta, espírito aspérrimo.
Endireitou-se a cartomante; um pouco impressionava, quando cerrados
os olhos de ave noturna, o epsilone do nariz e sobrancelhas. — “Ao
senhor, não engano...” Mais amadora que charlatã. — “A
predição é dom, não ciência ou arte. Vem quando vem. A hora não
é boa...”
— “Sei.
Segue-me um homem armado, doido de ciúme e ódio. Decerto me viu
entrar e espera lá fora.” — “Um marido?” Madame de Syaïs
outra vez misturava as cartas, mais digna, menos ágil. — “Verei.
Distraia-se do assunto. Concentremo-nos.” Ele quis, agora era
quem guardava os olhos; soletrava-lhe confiança a voz, impessoal
humaníssima. — “Deus nos dê luz...” Virou o bobo, o
mago, o enforcado, a lua, a torre e a temperança. — “As
figuras desdizem-se! nada acusam...” — ela mesma se agastava.
— “Tudo, mal para saber o futuro imediato... maluco ou
sinistro” — ele se forçava a rir, não trazendo à testa os
punhos, um instante sucumbido. A morte, o sol, o dia-de-juízo. A
mulher também mordeu beiço, de pena e brio. — “Com o baralho
comum, não as do tarô, quem sabe... Vale é o intuir, as cartas são
só para deter a atenção.” O moço aprontou-se a ver. Tão
logo a tentativa desnorteava-se. Espiavam nos naipes sutil
indecifrar-se: de como por detrás do dia de hoje estão juntos o
ontem e o amanhã. A adivinhã cruzou os braços.
Descruzando as
pernas: — “A gente vive é escrevendo alguma bobagem em
morse?” — Ladal levantou-se. — “Vou procurá-lo!
Talvez eu nem me defenda...” — toou o que disse, com
imperfeita altivez. Mirou-o a mulher desfechadamente: — “O
senhor pede presságio ou conselho? E acerta. Sempre o que importa é
viver o minuto legítimo.” Tornava a mexer as cartas coloridas.
— “Nem tanto, Madame, nem tanto...” — escarniu-se. Mas
esperou. Seu rosto parecia mais uma fotografia. — “Detesta
esse homem?” — “Não.” — “Não o enfrente” — com
vigor e veludo. A magia — o carro, a justiça, a grã-sacerdotisa.
— “Teme?” A tentação — sendo o amor; o mundo, a
força, o hierofante. — “Sua mente abrange previsões e
lembranças, que roçam a consciência. Prefere não agir: evita
novos efeitos, pior carma.” Ele nem teve de sorrir, depois de
meneios com a cabeça. — “Seu destino já se separa do outro.
A isso, sem saber, ele reage, estouvado, irrompente aproximando-se.”
A sabedoria — o eremita. A imperatriz, que pinta a natureza. —
“Algo pode ainda obvir, o mau saldo...” Ostentadas as íris
claras. — “Fique. O tempo vale, ganhe-o. O tempo faz. O tempo
é um dogma...” Ladal curvou-se. — “Tomo seu moscatel,
não sua filosofia. Sou um néscio.” Meio mais tranquilo.
Ele falava (ela
respondendo): Aconteço-e-faço? (Reze.) Que jeito? (Pare
de pensar em seu problema — e pense em Deus, invés.) E lá
creio? (Não é preciso.) Sem treino nem técnica? (Deus é
que age. Dê a ele lugar, apenas. Saia do caminho.) Como? (Não
forme nenhuma imagem. Tome-se numa paz, por exemplo, alegria, amor —
um mar — etcétera. Deus é indelineável.) Teoria? Court de
Gébelin? Etteilla? Em que grimório ou alfarrábio? (Emmet Fox.
Experimente. Um livrinho de seis páginas.) Renega a cabala
então, o ofício de profetisa? (A qualquer giro, a sina é
mutável. Deus: a grande abertura, causa instantânea. Desvenda-se
nas cartas a probabilidade mais próxima, somente. Respira-se é
milagre.) E ele, o outro? É justo? Deus deve ser neutro... (A
ativa neutralidade. Reze, ajudando o outro, não menos. O efeito é
indivisível. Tem cada um sua raia própria de responsabilidade.
Também o outro é indelineável.) Os termos contrastantes...
(Deus — repito, repito, repito! Não pense em nada.) Deram
uma única interjeição — trementemente:
Tinia a campainha,
da entrada. — “Quem for, esperará, na ante-sala...” Não
entreolhavam-se os dois, em titubeio, não unânimes, nos rostos o
enxame de expressões. Caluda, já Madame de Syaïs ia colher, à
porta do corredor, o cochicho de aviso da criada. Desapontadamente —
devia, sim, de ser o outro, de atabalhôo, dando naquele
contra-espaço.
— “Nada tem
a fadar-me. Não há mais o tempo. Há é o fato!” — e Ladal
elevava o copo, feito brinde. Ela ergueu mão: seu cheio feixe de
dedos. — “Não. O tempo é o triz, a curva do acrobata, futuro
aberto, o símbolo máximo: o ponto. No invisível do céu é que o
mar corre para os rios... Nunca há fatos.” Saída alguma, de
escape. Não onde esconder-se. Nem chamar polícia. Tortamente
oposto, a três passos, preso, passearia o outro sua carga de amargo.
— “Talvez pense que a mulher se encontre aqui...” — “Ou
vem à consulta, simplesmente...” — “O nome é Mallam,
Dr. Mallam...” — “Vale que seu seja, de Syaïs, Râ-na-Maga ou
Ranamaga?”
Era nem equilíbrio,
pingo por pingo, d’ora-agora, o escoar-se. O transprazo. Subiam em
si, não ouviam, não viam. Da parede o relógio debruçava-se para
bater.
E: oh. O estampido,
tiro, na saleta, de evidência dramática. Cá, os dois paravam, sem
respiro, não unidos personagens sem cena. Ladal fez maquinal recuo.
Madame de Syaïs emaçou ainda as cartas espalhadas. Um deles então
abriu a porta.
Ali dera-se o
dar-se-á — remorsivo — visão de tempos não passados. Tombado
no chão, mais o revólver, amarrotava-se morto o outro, o peito em
rubro e chamusco — que nem o mago, o diabo, o bobo — ele mesmo
por si rejeitara-se, irresolvidamente, sem fim, de história e
trapalhada. Quase o choravam, em atitude insuficiente.
Guimarães Rosa,
in Ave, palavras
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