Raimundo
da Silva Duprat, o único barão de Duprat, nasceu em Pernambuco e
foi prefeito de São Paulo na primeira década do século XIX. Não
sei se foi um bom prefeito. Aliás, não é do barão nem do
ex-prefeito que quero falar. Mas, para chegar ao assunto, devo
mencionar a rua Barão de Duprat, próxima ao formigueiro humano da
Vinte e Cinco de Março. Agora que citei a rua, o barão e o
político, passo para o brasileiro comum.
Eu
o conheci em dezembro de 1998, duas semanas antes da minha primeira
noite natalina em São Paulo. Tinha ido à Vinte e Cinco de Março
para fazer uma pesquisa de campo sobre imigrantes árabes e armênios
que se estabeleceram há mais de um século na famosa rua comercial e
seus arredores. Andava pela rua Barão de Duprat quando me deparei
com um vendedor de água mineral. Gritava “Ááááágua, água
mineral geladinha, mineraaaaal”. O homem suava, os gritos
desesperados me deram tanta sede que pedi uma garrafa. Ofereceu duas:
que eu escolhesse a mais gelada.
“Quanto
custa?”
“Oitenta
centavos.”
“E
quanto você ganha por cada garrafa?”
“Vinte
centavos.”
Era
um homem de uns cinquenta anos de idade. Vinte centavos por garrafa.
Quantas
ele vendia por dia?
“Quando
Deus tá de bem comigo, mais de trinta.”
Fiquei
por ali, na calçada da Barão de Duprat, observando o vendedor de
água mineral. Magro e pálido, sua força estava na voz. E a voz
significava: vontade de sobreviver. Mas não parecia triste nem
derrotado. Quando a polícia se aproximava, ele segurava a caixinha
de isopor, pegava um microfone velho e começava a cantar um
chorinho. Que voz! Reconheci um dos chorinhos porque é um dos hinos
de São Paulo: “Jamais te esquecerei”, do grande compositor e
violonista Antônio Rago. Quando a polícia se afastava, ele colocava
a caixa de isopor no chão e o canto era substituído pelos gritos.
Perguntei
o nome dele.
“Nome?
Pode me chamar de Bandolim.”
Voltei
para a Barão de Duprat nos sábados seguintes, mas não ouvi os
gritos nem o chorinho. Terminei de fazer a pesquisa, passou o Natal,
o século ficou para trás e perdi Bandolim de vista.
Oito
anos depois, no dia 12 de dezembro, quando eu atravessava uma
pracinha escondida em Pinheiros, vi um velho sentado na grama.
Triste, entre dois violões toscos e belos. Quando me aproximei,
reconheci Bandolim. Mas ele não me reconheceu. Em 1998, eu era
apenas um transeunte, um dos compradores de uma garrafinha de água
mineral. Aquele homem que gritava para sobreviver e depois cantava na
presença dos policiais era inconfundível. Envelhecera. Malvestido e
mais pobre do que no outro Natal. Mas Bandolim não era mendigo.
Ainda não. Ele mesmo fabricava os violões. Havia quatro anos morava
nas praças e ruas de São Paulo, catando pontas e placas de madeira,
latas e pedaços de arame. Com esse lixo fazia seus violões e os
vendia por dez reais. Ou por quinze, quando dava sorte.
Não
cantava mais?
“Minha
voz ficou pequena”, ele disse, sem vontade. “Não canto mais.”
Observei
os dois violões, decidido a comprá-los.
“Por
quê?”
“Porque
eu tocava e cantava para ela.”
“Sua
mulher?”
Bandolim
me encarou e murmurou:
“Minha
amada. Ela sumiu…”
Milton
Hatoum, in Um solitário à espreita
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