Para
May Zarif
“Muita
gente sonha em conhecer Paris, Roma, Barcelona, Londres, Cairo”,
disse minha amiga. “Eu, desde criança, sonhava em conhecer
Shanghai.”
Minha
mãe falava muito de um artista chinês que encantou a cidade com
seus desenhos e aquarelas. Ele morou uns anos em Manaus e ganhava a
vida com sua arte de aquarelista. Perguntava a uma pessoa o nome de
um parente morto, pedia que lhe contasse alguma coisa sobre o finado,
depois pintava com aquarela manchas coloridas e dessas manchas surgia
um rosto. O rosto do parente. Minha mãe dizia que esse chinês, além
de ser um artista, era um bruxo. Por isso ficou conhecido como “O
bruxo de Shanghai”.
Eu
tinha nove anos quando vi o desenho do rosto da minha finada avó,
uma aquarela do artista chinês. Minha mãe me mostrou fotografias
dessa avó que não conheci, eu fiquei impressionada com a semelhança
entre as fotos e a aquarela.
Quando
eu ia completar treze anos, aconteceu uma tragédia. Minha mãe foi
me apanhar na Escola Normal. Quando atravessávamos a praça São
Sebastião, paramos no lugar onde o chinês trabalhava.
“Ele
ficava aqui, ao lado desse barco de bronze onde está escrito Ásia”,
disse minha mãe.
Observei
o monumento, o barco, imaginei o artista com seus pincéis, tintas,
folhas brancas, e perguntei por onde ele andava.
“Não
sei”, ela disse. “Morou aqui nos anos 1950. Ainda estava em
Manaus quando tu nasceste, mas um dia ele sumiu. Era um artista muito
querido.”
Entramos
em casa depois de meio-dia, minha mãe murmurou que não queria
almoçar, estava indisposta e foi deitar na rede. Almocei com meu
pai, conversamos sobre a Escola Normal e sobre um navio inglês que
estava atracado no porto. Antes de fazer a sesta, meu pai perguntou à
minha mãe se ela se sentia melhor. Ela não respondeu. Estava morta.
Morreu deitada, dormindo.
Sim,
uma coisa terrível… Quando me lembrava dela, recordava também do
pintor de Shanghai, porque as últimas palavras que ouvi de minha mãe
falavam do artista e do lugar onde costumava trabalhar. Aí passei
anos com a ideia de visitar a China, ou melhor, Shanghai.
Meu
pai dizia que isso era besteira, ou loucura. Não insisti, mas também
não desisti de visitar Shanghai. Meu pai morreu muito velho, em
1996, quando eu já estudava mandarim com um chinês que trabalhava
numa fábrica em Manaus. Quando meu professor envelheceu, eu já
falava mandarim, mas não conhecia o dialeto falado na região de
Shanghai. Há dois anos viajei à Ásia.
Shanghai,
como tu sabes, é o maior porto do mundo, a cidade é enorme, mas
essa metrópole tentacular não me intimidou. Visitei o museu de
Belas-Artes, o Centro de Escultura de Shanghai, o maravilhoso Lu Xun;
saía sozinha, sem intérprete: o nome e endereço do hotel bastavam.
Mas fui com um guia até as ilhas Yangshan. Para quem conhece a
China, o Ocidente é um diminutivo.
Dois
dias antes de voltar para o Brasil, escrevi o nome do artista e
perguntei ao guia se ele conhecia alguém com esse nome. Ele me levou
a um bairro distante do centro, um bairro situado no coração de
Puxi, a oeste do rio Huangpu. Paramos diante de um pequeno sobrado em
estilo art déco, resquício da colonização francesa.
“Esta
é a casa do artista”, disse o guia. “Morreu em Shanghai, em
1978. Sei por que você se interessou por ele.”
“Por
quê?”
“Porque
ele morou nove anos na Amazônia.”
Entramos
na casa. As paredes das salas estavam cobertas por desenhos e
aquarelas de rios, igapós, furos, sementes, frutas, uma enorme
variedade de plantas e árvores. E também aquarelas de horizontes,
em que a floresta e o céu eram desenhados em vários momentos do
dia. Não vi nenhum desenho de pessoas, nem de animais, peixes,
insetos. Lembrei a aquarela do rosto da minha avó e pensei: ele
desenhava o rosto dos mortos para sobreviver. Era um artista
apaixonado pela natureza.
Perguntei
ao guia quanto tempo o artista tinha morado naquela casa.
“Quase
vinte anos”, respondeu. “Mas ele só ocupava um quartinho do
andar superior. Quando ele morreu, os outros moradores tiveram que
sair daqui. A prefeitura fez esse pequeno museu.”
Quis
visitar o quarto. Era de fato pequeno, mal cabiam uma cama, uma
cadeira e uma mesinha. Reparei nos pincéis de vários tamanhos e
formas, nos delicados estojos de tintas, na roupa dobrada, arrumada
sobre o assento da cadeira. Um quartinho modesto, ou mesmo pobre, que
contrastava com a riqueza e o luxo que eu tinha visto em Pudong. Mas
não senti pena do artista. Por que sentiria pena de um artista
talentoso e corajoso?
Quando
observei a mesinha, vi uma fotografia ao lado de um caderno. Na capa,
estava escrito em mandarim: ‘Passagem por Manaus’. Depois, quando
observei a foto, vi o artista ainda jovem abraçado a uma moça.
Reconheci o rosto de minha mãe. Não sei se a foto era anterior ou
posterior ao meu nascimento. Sei que minha mãe parecia feliz. O
sorriso no rosto dela foi a melhor lembrança de Shanghai.
Milton
Hatoum, in Um
solitário à espreita
Nenhum comentário:
Postar um comentário