Recompensado
Nando tinha sido no dia seguinte, quando entrava no claustro
revestido de azulejos azuis da vida de Santa Teresa. Só homens são
admitidos à história azul da vamp de Deus nascida quando seu
crucificado amante desembarcava das naus no Brasil. Magra menina em
cujos negros olhos armava-se a fogueira futura — mi sagacidad
qualquier cosa mala era mucha — e de repente monja aberta em
lírio definitivo. Maçã macilenta do segundo paraíso, lírio com
que Deus filho se apresentará dizendo há esperança, Pai, se a esta
alvura alguns conseguem chegar. Mira esta monja branca em açucena
passada a limpo. Teresa boba de Deus no leito de linho místico
revolto de arroubamentos. Perdão se são as mesmas as palavras para
todos os amores. Mi honra esya tuya e la tuya mia.
Nando
buscou no automatismo de sempre a cabeça de Teresa no azulejo em que
recebe a inspiração de fundar a Ordem das Descalças, o azulejo do
fundo, à direita do esguicho central do repuxo se observado em dia
sem vento do limiar da porta da Sacristia. Com espanto, apenas
consciente no interior de sua meditação, via um ladrilho de sol em
lugar do ladrilho azul. Depois, com a proximidade maior, avistou o
azulejo predileto mas com a mancha amarela aos pés, como se Teresa
flutuasse sobre a nuvem de ouro dos cabelos de Francisca. Era a
recompensa ao samaritano.
— Que
é isso, padre Nando? Tão distraído — disse Francisca.
Francisca,
em geral, quando se encontravam, começava ainda por chamá-lo
“padre”. Depois esquecia.
— É
que...
— Já
sei. Está espantado de ver uma mulher no claustro.
Francisca
brandiu um papel que tinha por baixo da tábua de desenho com o
grande pregador de metal de firmar as folhas.
— D.
Anselmo me deu um salvo-conduto para desenhar os azulejos de Santa
Teresa.
— Ah,
muito bem — disse Nando —, uma invasão legalizada.
— E
pacífica. De mais a mais Teresa de Ávila era uma mulher. Por que há
de ficar sequestrada entre homens? Ou entre santos, se fosse o caso.
Francisca
tinha falado com expressão perfeitamente séria mas Nando já notara
que na radiosa pureza dos seus olhos verdes se acendiam às vezes uns
fogos minúsculos.
— Mas
o que eu queria mesmo fazer hoje aqui — disse Francisca — é lhe
agradecer o abrigo que deu a Levindo.
— Como
vai ele? — disse Nando. — Deve ter perdido bastante sangue.
— Está
perfeito outra vez. Nem fez mais nenhum curativo, depois do seu. E
não me espanta nada que ele esteja metido em outra “invasão” de
engenho.
— Anda
muito afoito o Levindo — disse Nando. — Veja o caso de outro dia.
O tiro pegou na mão mas podia ter causado ferimento grave.
— Eu
sei, eu sei — disse Francisca — e não pense que não me aflijo o
tempo todo com o que pode acontecer a ele. Mas Levindo acaba por
convencer a gente de que não morre antes de fazer uma revolução.
Diz que ninguém morre no meio de um trabalho importante.
Nando
olhou os dois croquis da folha em que Francisca trabalhava. Na parte
superior, longos pés descalços da carmelita pisando lajes frias.
Embaixo, o esboço de Teresa alanceada pelo anjo, no auge do
arroubamento, olhos velados de enlevo, o torvelinho do êxtase
misturando hábito, capuz e cara da monja.
— Vai
documentar as obras de arte do mosteiro? — disse Nando.
—
Principalmente estes azulejos. É o que
existe de mais ameaçado aqui.
—
Ameaçado? — disse Nando. — E nós
que nos gabamos de cuidar tão bem deste forro do nosso claustro.
— O
forro do claustro de vossas reverendíssimas ainda existe porque os
ladrilhos foram muito bem colados à parede. Vossas reverendíssimas
adoram Teresa mas não se dão ao trabalho de preservá-la. Há uma
carência de Martas nesta casa.
—
Senhor — riu Nando —, que ataque a
nós todos.
— Sabe
que faltam quinze azulejos? — disse Francisca.
— Não
é possível — disse Nando.
— Pois
então conte as falhas na parede.
Nando
sempre perguntava a si mesmo, diante de uma mulher moça e bonita
como Francisca, se era pura também. Francisca era. Tinha de ser. Era
das que Nando contemplava sentindo-se seguro em sua virtude,
defendido. O próprio Levindo, tão alegre e violento na sua pregação
trotskista, anarquista, comunista ou lá o que fosse, tratava
Francisca com doce ternura e quase um certo alheamento. Francisca
estava frequentemente sozinha, como agora no mosteiro. E esse
procedimento que Nando estranharia se outra fosse a noiva, aceitava
como intuição perfeita do noivo. Mesmo no seio de uma montanha o
cristal é infenso à terra. Mesmo imersa no mundo Francisca era
invulnerável a ele. Pertencia à raça das mulheres amigas da
Igreja, inspiração de poetas. Nem todos podem ir diretamente a
Deus, escalando o Monte Carmelo em mãos como garras lívidas e
joelhos sangrentos, no rastro apaixonado de Don Juan de la Cruz aliás
San Juan Tenório. Irmãos leigos dos santos, os poetas do amor
indicam trilhas menos escarpadas e semeadas de lagoas que são íris
verdes.
Antonio
Callado, in Quarup
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