— Foi
então assim?
— Foi,
mulher. Sem tirar nem opor.
— Pois
eu lhe digo, marido: temos que desenterrar essa estrela decadente.
—
Porquê?
— No
nosso quintal só os nossos é que plantamos, só os nossos de carne
e osso.
O
casal decidiu que, nesse mesmo dia, transladaria os restos imortais
do corpo celeste. E os enterraria junto ao rio, no lugar do sagrado
bosque. É lá que se sepultam as crianças.
Antes,
porém, consultariam o curandeiro Lázaro Vivo. Não que essa
consulta fosse do agrado de Mwadia, que ela não dava créditos
àquilo que chamava de crendices. Nem Zero, se fosse coerente com os
mandamentos dos vapostori, seprestaria a tais consultas. Quando olhou
a sombra nos olhos do marido, Mwadia entendeu que aquele não era o
momento para lhe requerer coerências.
Aliás,
desde os tempos da Revolução que o velho Lázaro Vivo deixara de se
apresentar como um nyanga. Ele era, agora, um conselheiro
tradicional. Fosse qual fosse a sua oficial designação, o adivinho
lhes daria a necessária permissão para entrar na floresta. Só
isso, agora, importava.
Antes
da visita a Lázaro, Zero Madzero teve ainda tempo para se deitar.
Queria dormir, apagar o seu existir. Mwadia Malunga acariciou-lhe a
fronte e ele se afundou no sono. A mulher voltou a espreitar a campa
no quintal. Pobre Madzero, ele acreditava tratar-se de uma estrela.
Não seria ela a desmenti-lo.
Mas
a esposa sabia: aquilo que se vê no céu nem sempre são astros.
Aprendera com o pai a distinguir os verdadeiros dos falsos corpos
celestes. Esses outros, os enganosos astros, são barcos em que
viajam os que não souberam morrer. A mulher sorriu: o que estava ali
sepultado no quintal eram restos de uma desembarcação. Ela sabia de
suas certezas: o seu nome, Mwadia, queria dizer “canoa” em
si-nhungwé. Homenagem aos barquinhos que povoam os rios e os sonhos.
Depois,
olhou a nascente madrugada como se procurasse um lugar vago nos céus.
A lua ainda se destacava, lá no lusco-fusco. A Mwadia doeu-lhe uma
súbita saudade da casa de infância. Chegou a escutar a voz de sua
mãe, como se a lembrança fosse água tombando sobre água. Fixou
aquela luz viúva e o seu olhar se embaciou. Esfregou o rosto,
corrigindo tristezas, num gesto redondo:
— A
lua hoje está cheia de pólen.
Não
tinha passado uma hora: a mulher escutou o pastor gemendo. Ardiam-lhe
as mãos. Ela chamou-o. Mas o homem se queixava dormindo, o pranto
lhe emergia do outro lado da consciência. Mwadia teve medo de tocar
nas lágrimas que escorriam pelo rosto do marido e encharcavam a
almofada. Quem chora dormindo pode também rezar sem despertar. E,
assim, ela encorajou o pastor:
— Isso,
vá rezando, marido. Mas reze de sua maneira, você é um postori.
Os
outros rezavam a Deus. Ele rezava com Deus. Os outros rogavam ao
Criador. Madzero conversava com Ele, fazendo dele as Suas palavras.
A
presença da esposa deve ter invadido o espírito do adormecido
burriqueiro. Pois, segundo contou mais tarde, Madzero sonhou que as
suas mãos se juntavam, duas chamas numa única fogueira. Em lugar
dos dedos, lhe doíam dez pequenas labaredas. Foi então que outras
mãos, feitas de água, se aconchegaram nas suas e aplacaram aquele
incêndio. Eram as mãos de mulher. Seriam as minhas,
adiantou-se Mwadia. Não. Aquelas eram mãos de mulher branca. E a
mulher do sonho vaticinou:
— As
minhas mãos são de água. Sou feita para a sede dos homens.
A
voz ecoou na cabeça do pastor. As palavras o sacudiram por dentro. A
voz tomava posse dele, usando a sua boca para falar:
— Eu
sou a mulher.
— Está
maluco, marido? Agora sonha que é mulher?
Foi
o trespassar da gota. Nenhum homem no mundo se envaidecia tanto de
ser macho. Zero Madzero puxava lustro da tradição viril dos seus
antepassados: os Chikundas [4] , bravos caçadores de elefantes,
intrépidos viajantes do rio, lendários guerreiros. Como podia,
agora, o seu homem se confessar mulher?
Mwadia
sacudiu o marido, vestiu-o à pressa e o enca-minhou pelos
carreirinhos até ao topo do morro Camuendje. Seguiram por velhos e
secretos atalhos, ocultos entre areias e cascalhos, por onde, durante
séculos, os Chikundas conduziram missionários, exploradores e
comerciantes de escravos e marfim.
Em
Antigamente toda a noite é derradeira. Cada dia é tão custoso e
espesso que parece carregar o último sol. Depois deste escuro,
pensou Mwadia, já nenhuma outra luz haverá. Talvez tenha sido esse
receio que a fez sorrir, aliviada, quando, já no topo do monte,
avistou na distância as escassas luzes de Vila Longe.
Contornaram
as grandes rochas de granito: nas traseiras daquele cabeço morava o
adivinho Lázaro Vivo.
—
Diga-me, marido: você quer mesmo
consultar o conselheiro? E a sua igreja não proíbe as cerimônias
tradicionais?
— A
nossa igreja proíbe, mas, às vezes, a circunstância é maior que a
situação.
O
compadre Lázaro refugiara-se no monte Camuendje desde que a
Revolução perseguira os curandeiros. Dizia-se que, agora, os tempos
tinham mudado, mas Lázaro Vivo não facilitava. Quisessem
incomodá-lo e deveriam atravessar vales e rios e vasculhar por entre
as penedias da montanha.
Chegados
à vedação, Mwadia bateu as palmas, em pedido de licença, enquanto
Zero Madzero foi entrando pelo pátio do curandeiro. Espreitou pelos
recantos e não viu ninguém. Mwadia procurou uma sombra e
recostou-se, decidida a esperar à entrada do recinto. Recordava-se
bem de Lázaro Vivo, o adivinho. O homem se convertera numa figura
mítica desde que, aquando do enchimento da albufeira de Cahora
Bassa, ele se recusara a abandonar a sua velha casa. — Fico a fazer
companhia aos mortos , teimara. Zero Madzero e Lázaro Vivo eram dois
opostos: contrastando com a cabeça rapada do primeiro, o adivinho
exibia longas e farfalhudas tranças; o burriqueiro vestia sempre uma
camisa branca, o nyanga envergava uma túnica preta. Um e outro se
colocavam em lados contrários do oculto: os feiticeiros trazem a
chuva dos primórdios; os vapostori transportam o fogo do fim do
mundo. Um ruído alvoroçou Mwadia: era o nyanga que entrava em casa,
vindo do mato. A mulher se espantou: o adivinho mudara de aparência
dos pés à cabeça. As tranças deram lugar a um cabelo curto e
penteado de risca, a túnica fora substituída por uma blusa
desportiva. Debaixo do braço trazia uma tabuleta e foi assim,
surpreendido e meio torcido, que saudou a visitante: — Acabo de
chegar de Vila Longe! Fui lá buscar esta tabuleta que mandei fazer
para colocar aqui, na entrada do estabelecimento. Colocou a tábua no
chão de modo a que o letreiro se tornasse legível. Estava escrito:
«Lázaro Vivo, notável das comunidades locais, curandeiro e
elemento de contacto para ONGs». O riso de confiante orgulho não
esmoreceu quando o adivinho perguntou: — E Madzero onde está? —
Já entrou, está aí no quintal. — Ele está bem? É que, lá na
Vila, dizem-se coisas. — Zero só sai de noite. — Pois ele que se
acautele e se torne mais diurno. Dá azar um homem deixar de ver a
sua própria sombra. — Agora vá, compadre Lázaro: fale com Zero
que ele está muito angustiado. Eu aguardo aqui fora . A mulher
regressava à sua condição de esposa: retirou-se, convertendo-se em
ausência. Lá fora, ela se dedicaria à sua mais antiga vocação:
esperar. As vozes, mesmo aguadas, lhe chegariam, ora distintas ora
enevoadas. Embalada, a mulher fechou os olhos, encurvou os ombros
para reduzir o tamanho da sua sombra. Lázaro Vivo fixou os olhos em
Mwadia e suspirou longamente. Há uns anos talvez ele ensaiasse um
tropeção de pestanas com Mwadia. Agora era tarde. Corrigiu o
devaneio, acertando os chinelos nos pés como se, desse modo,
espantasse pensamentos e rematou: — Não fique aí, faça o favor
de entrar. Surpreendida, a visitante ainda reagiu. Mas o curandeiro
insistiu, peremptório: aquilo não era um ritual, era apenas uma
conversa sem demais implicações. A mulher acabou por aceitar e,
timidamente, cruzou o pátio onde Zero Madzero já ganhara assento.
— Não
contava que eu viesse, compadre Lázaro?, começou por inquirir
Madzero.
O
curandeiro espreguiçou-se demoradamente, como se entendesse expulsar
o corpo de si mesmo.
— Os
que me conhecem, sabem: gosto de surpresa, mas só quando sou
avisado.
— Quer
saber o que sonhei?, perguntou o burriqueiro, com voz pastosa.
Não.
Era isso que ao curandeiro Lázaro lhe apetecia responder: que não,
não queria que ninguém mais lhe contasse sonhos. Estava saturado.
Já não suportava essa mentira que é o relatar dos sonhos. Porque
nenhum sonho se pode contar. Seria preciso uma língua sonhada para
que o devaneio fosse transmissível. Não há essa ponte. Um sonho só
pode ser contado num outro sonho. Mas o curandeiro, amável, quase
profissional, lá condescendeu:
—
Conte. Conte lá esse seu sonho.
— Sabe
uma coisa, Lázaro? Até tenho medo de contar...
— Medo?
O
compadre Lázaro sabia: havia o sagrado e o segredo. Lázaro ficava
com um, Zero ficava com o outro. Assim se expressou o pastor, entre
nervosos risos. Falava apenas para afastar o silêncio. E depois,
perguntou :
— Tem
um beberico por aí?
— Mas
vocês, os vapostori, não podem beber...
— Nós
também não podemos estar aqui nas cerimónias. Um pecado perdoa
outro.
— Bom,
acho que sobrou uma cabanga. Com este calor, porém, já deve estar
muito fermentada.
O
adivinho arrastou o braço e tomou a garrafa pelo gargalo. Um líquido
espesso e esbranquiçado foi tombando num copo de metal. Madzero,
primeiro, entornou uns pingos no chão, a lembrar os falecidos.
Depois, fechou os olhos enquanto sorvia a bebida. Desconhecia se o
que lhe sabia bem era aquele dedilhar de prosa ou o adiar do assunto
da consulta. Só agora notava o quanto lhe fazia falta conversar com
gente humana. Não o palavrear ligeiro que, às vezes, destrocava com
Mwadia. Mas conversa de macho para macho. Estalou a língua nos
dentes a aprovar a qualidade da bebida.
[…]
Mia
Couto, in O outro pé da sereia
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