Se
eu tivesse uma mãe como a de Jakie Shaler eu faria alguma coisa. Eu
faria alguma coisa muito estranha. Eu sairia de casa e procuraria uma
outra mãe.
Jakie
é um sujeito bacana para zanzar por aí, mas não fala muito. E seu
pai é também um sujeito bacana, mas não zanzamos por aí com o pai
de um camarada. O sr. Shaler não é mau como a sra. Shaler. Compra
para Jakie bolas de futebol, de beisebol, de basquete, e tacos, e
luvas de boxe, e trenós, e raquetes de tênis, e arcos e flechas e
ferramentas. O sr. Shaler comprou uma arma para Jakie, também. Então
Jakie tem todas as coisas que quer, mas não anda por aí com a gente
porque sua mãe é dura de jogo. Seu pai é muito diferente. Seu pai
é um sujeito bacana.
É
sua mãe quem dá todas as surras naquela casa. Ela não deixava
Jakie fazer quase nada. Não o deixava sair do quintal aos sábados
e, nos dias de aula, ele tem que voltar da escola direto para casa.
Antes de seu irmão menor Petey morrer, Jakie tinha de voltar para
casa e brincar com ele o tempo todo. Jakie ficava chateado porque
Petey era pequeno demais para ser companheiro de brincadeiras. Ele
tentava escapar às escondidas. Mas, no momento que atravessava a
cerca, Petey começava a gritar com toda a força de seus pulmões e
a sra. Shaler saía correndo da cozinha atrás de Jakie. Ela o pegava
e levava para o porão e castigava seu couro com uma coça infernal.
Era possível ouvir os berros de Jakie por toda a cidade. Batia nele
com uma vassoura especial. Surrava com toda a força de seus
músculos. Nós víamos as marcas azuladas na sua bunda e em suas
pernas. Ele as mostrava para nós.
Jakie
se sentia infeliz por ter uma mãe tão malvada. Ela era pior do que
malvada: era suja, mas Jakie não contava isso. E quando estava na
escola ele detestava sentar-se depois de ter sido surrado por ela.
Ele se sentava lenta e suavemente. Sentava-se sobre as mãos para que
não doesse tanto. Isso mostra o tipo de mãe que tinha. Não podia
correr depois de uma surra. Depois de uma surra ele atuava como
árbitro dos jogos, porque a coisa é sempre mais fácil para os
árbitros. Arbitrava durante uma semana seguida.
A
sra. Shaler fez Jakie comer sabão duas vezes e uma vez queimou sua
língua com um atiçador. Jakie teve de comer sabão porque falou
palavrão e, se você acha que sabão é tão bacana, experimente. A
razão por que teve sua língua queimada com um atiçador foi porque
foi flagrado fumando. Estávamos todos fumando no celeiro, a um
quarteirão da casa dos Shaler. A sra. Shaler não nos pegou fumando
de verdade, mas viu a fumaça e ficou sabendo. E Jakie teve a sorte
de a sra. Shaler não encontrar o troço que nós estávamos fumando.
Rapaz! Eu digo isso porque era esterco de cavalo.
Foi
assim que Petey, o irmãozinho de Jakie, morreu. Um dia ele estava
brincando no quintal e um carro ia passando. Petey correu para a rua.
Correu direto contra o para-choque. Foi derrubado e atropelado e
morreu na hora.
Fizeram
o funeral na sexta-feira. Todo mundo na nossa sala foi ver o pequeno
Petey na casa dos Shaler na quinta-feira. Todo mundo teve de trazer
um níquel para as flores, porque Petey era irmão de Jakie e Jakie
era da nossa classe na escola. Alguns sujeitos não trouxeram o
níquel. Robert Teale não trouxe.
O
pequeno Petey estava num caixão branco. Vestia uma roupinha nova.
Exalava um cheiro doce e não parecia muito natural. Tinha o rosto
tão branco que parecia usar uma peruca. As cortinas estavam fechadas
e havia velas acesas na sala, o que tornava a atmosfera assustadora.
Ajoelhamos
e rezamos o rosário. Algumas das meninas choravam. Era difícil não
chorar. Depois de algum tempo, o único que não chorava era Robert
Teale. Sim, Robert Teale é um durão. É o tipo de sujeito que não
chora por nada.
A
sra. Shaler entrou na sala. Usava um vestido preto e seus olhos
estavam muito vermelhos. Gritou e correu até o caixão e o abraçou
e encostou a cabeça no peito de Petey e amarfanhou os seus cabelos e
gritou e berrou a Deus, Nosso Senhor, para que não arrancasse Petey
dela.
— Leve
a mim, Deus! Não leve o meu bebê. Oh oh oh oh oh oh oh oh oh —
chorava sem parar.
E
era triste. A coisa mais triste que vocês já viram. Sabem como ela
se sentia, sendo a mãe de Petey. Eu desejava que Deus a levasse no
lugar de Petey.
Algumas
das garotas choraram tanto que começaram a debandar. Todo mundo
chorou, menos Robert Teale. É preciso algo muito forte para fazer
aquele sujeito chorar. Ele é durão. Mas as garotas deveriam ter
permanecido na sala, porque perderam algo. Perderam a melhor parte.
Foi
quando a sra. Shaler começou a falar com Petey como se não
estivesse morto, mas apenas adormecido. Ajoelhou-se no chão e puxou
Jakie para se ajoelhar ao seu lado. Colocou os braços ao redor do
pescoço de Jakie e quase o sufocou até a morte. Você podia ver o
rosto de Jakie ficar vermelho e depois arroxeado.
Ela
gritou: — Ó meu pequeno Petey! Sua mãe não foi uma boa mãe para
você. Volte, por favor, filhinho.
Todo
mundo menos Robert Teale estava chorando. Até eu chorava. As moças
continuavam a sair com os lenços sobre o nariz. Os cabelos de Petey
estavam desgrenhados como se tivesse acabado de deixar a cama naquela
manhã. Mas ele não acordou de verdade. Estava morto no caixão. Só
parecia que tinha acordado.
A
sra. Shaler começou a gritar. Toda vez que o fazia, me embrulhava o
estômago. Eu estava mais assustado agora. Estava mais assustado
agora do que triste.
— Ó
Deus, traga-o de volta!
Jakie
mal podia falar de tanto que tinha chorado.
Ele
disse: — Não fale assim, mãe.
Acho
que se sentia inferior diante de nós.
A
sra. Shaler gritava: — Eu me arrependo! Eu me arrependo! Eu me
arrependo!
Agarrou
Jakie. Quase o derrubou.
Disse:
— Eu me arrependo! Oh, Jakie, eu prometo a você aqui na frente de
Petey, aqui na frente de todos os seus maravilhosos amiguinhos, que
vou ser uma boa mãe a partir de agora. Eu lhe prometo, Jakie. Eu
prometo.
Jakie
disse: — A senhora já é uma boa mãe, mamãe. A senhora é uma
ótima mãe, mamãe. Juro que é.
O
sr. Shaler chegou. Pegou a sra. Shaler e levou-a ao quarto. Jakie foi
até o quarto quando seu pai o chamou. Algum tempo depois, o sr.
Shaler saiu do quarto e penteou os cabelos de Petey. Não falou nada.
E então saiu de novo. Nós, garotos e garotas, ficamos sozinhos com
o caixão. Era apavorante. Ficamos ajoelhados. Mal podíamos ver o
rosto e as mãos de Petey. Algumas das garotas queriam ir para casa,
mas não se levantaram. Os joelhos doíam de ficarmos ajoelhados
sobre o assoalho por tanto tempo. Um dos sujeitos queria saber o que
a gente faria a seguir.
Robert
Teale levantou-se. Começou a sair. Tinha mesmo coragem. Foi até o
caixão e debruçou-se bem perto do rosto de Petey e olhou bem de
frente para ele.
E
então falou: — Muito bem. Vocês podem fazer o que quiserem. Eu
não vou ficar aqui. Vou para casa. Estou indo.
E
saiu. Então todo mundo ficou realmente apavorado. Saímos correndo
da casa. Como era bom sair para a rua. Todo mundo foi para casa.
Fiquei
pensando sobre a sra. Shaler. Fiquei feliz que ela prometeu ser boa
para Jakie a partir de agora. Isso significava que Jakie poderia
zanzar por aí com a gente se quisesse e nós podíamos usar suas
bolas de futebol, beisebol e basquete, seus tacos e suas luvas de
boxe, seus trenós e suas raquetes de tênis, os arcos, as flechas e
as ferramentas. Podíamos usar sua arma também.
Fizeram
o enterro no dia seguinte. Pensamos que íamos poder sair da escola
para acompanhá-lo, mas nada feito. Esta escola é uma porcaria. O
único que conseguiu ir ao enterro foi Jakie. E o único motivo por
que o deixaram sair foi que Petey era seu irmão. Esta é uma
porcaria de escola. Minha mãe foi ao enterro. Ela disse que a igreja
estava cheia de gente.
Ela
disse: — Nunca vi flores tão lindas. O Clube dos Alces mandou uma
coroa enorme.
Fiquei
feliz que os Alces mandaram, porque meu pai é um Alce.
Minha
mãe disse: — Oh, senti muita pena daquele menininho Jakie.
Derrubou o castiçal sobre o caixão quando passou. Estava tão
assustado. Sentiu-se tão culpado por aquilo.
Jakie
compareceu à escola na segunda-feira. Ninguém perguntou sobre o
castiçal derrubado. Todo mundo já sabia. A mãe da maioria da turma
foi ao funeral e contou aos filhos. Tratamos Jakie com muito carinho,
pois o enterro fora apenas dois dias antes.
Escolhemos
os times para o jogo depois e o time adversário escolheu Jakie. Mas
Jakie não quis jogar.
Ele
disse: — Não posso jogar, vou ser o juiz para vocês.
Robert
Teale disse: — Meu Deus do Céu! Que tipo de mãe você tem? Ela
não prometeu que não ia mais surrar você? Isso que ela fez foi um
tremendo golpe sujo.
Jakie
não falou muito alto. Mal conseguíamos ouvi-lo.
Ele
disse: — Pessoal, vocês não sabem o que eu fiz. Vocês não foram
ao enterro, por isso não sabem o que aconteceu.
Robert
Teale disse: — Claro que sabemos. Eu sei o que você fez. Não foi
uma coisa tão terrível. Você não fez de propósito. Sabe, você
tem um diabo de uma mãe.
Jakie
começou a chorar. Não chorou alto. Não chorou porque tinha um
diabo de mãe. Chorou porque seu irmãozinho Petey estava morto. Dava
para ver.
John
Fante, in A grande fome
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