Deus
me deu tarefa de morrer.
Nunca
cumpri.
Agora,
porém, já aprendi a obediência.
Palavras
de Dona Hortênsia
Há
aqueles que nascem com defeito. Eu nasci por defeito. Explico: no meu
parto não me extraíram todo, por inteiro. Parte de mim ficou lá,
grudada nas entranhas de minha mãe. Tanto isso aconteceu que ela não
me alcançava ver: olhava e não me enxergava. Essa parte de mim que
estava nela me roubava de sua visão. Ela não se conformava:
— Sou
cega de si, mas hei-de encontrar modos de lhe ver!
A
vida é assim: peixe vivo, mas que só vive no correr da água. Quem
quer prender esse peixe tem que o matar. Só assim o possui em mão.
Falo do tempo, falo da água. Os filhos se parecem com água andante,
o irrecuperável curso do tempo. Um rio tem data de nascimento? Em
que dia exato nos nascem os filhos?
Conselhos
de minha mãe foram apenas silêncios. Suas falas tinham o sotaque de
nuvem.
— A
vida é que é a mais contagiosa — dizia.
Eu
lhe pedia explicação do nosso destino, ancorados em pobreza.
— Veja
você, meu filho, já apanhou mania dos brancos! — Inclinava a
cabeça como se a cabeça fugisse do pensamento e me avisava: —
Você quer entender o mundo que é coisa que nunca se entende.
Em
tom mais grave, me alertava:
— A
ideia lhe poise como a garça: só com uma perna. Que é para não
pesar no coração.
— Ora,
mãe...
—
Porque o coração, meu filho, o
coração tem sempre outro pensamento.
Falas
dela, mais perto da boca que do miolo. Certa vez, ela me puxou a
sentar. Seus ares eram graves. E disse:
— Ontem
tive nem sei se foi um pensamento.
—
Pensou o quê?
— Foi
assim pouco mais ou menos: eu precisava não viver para lhe conseguir
ver. Me está entender?
Enquanto
falava, seus dedos datilogravavam meu rosto, linha por linha. Minha
mãe me lia por dedos tortos.
— Você
é parecido a mim.
Depois
de mim seu ventre se fechou. Eu não era apenas um filho — era o
castigo de ela não mais poder ser mãe. E aquele destino em outras
punições se multiplicou: meu pai, em lugar de lhe reservar mais
carinho, passou a lhe infligir penas, deitando-lhe as culpas pelos
males do universo. E se sentiu aliviado: se ela perdera fertilidade,
ele tinha direito de não ter deveres.
— Agora
eu já não sou sujeito de nada. Me irresponsabilizo.
E
passou a dormir fora, gastando sua idade em leitos de outras. Minha
mãe chorava enquanto dormia na solidão do leito desconjugal. Não
soluçava, nem se escutava o despejo da tristeza. Só as lágrimas
lhe escorriam sem pausa durante a noite. De modo que despertava
encharcada em poça da mais pura e destilada água. Eu a tirava dali,
daquelas águas, e a enxugava sempre com o mesmo pano. Outra toalha
não podia ser: aquele era o pano que havia recebido seu único
parto. Aquele pano me embrulhara em minha estreia de ser. Seria, quem
sabe, a sua última cobertura.
Apesar
da noturna tristeza de minha mãe, eu vivia com o sossego de peixe em
água parada. Naquele tempo, não havia antigamentes. Tudo para mim
era recente, em via de nascer. Nos meses devidos eu ajudava minha mãe
na machamba. Lhe acompanhava entre os caminhos, sempre novos, tal era
a verduragem que teimava em reocupar os espaços. Ela sorrindo, como
se desculpasse os maus modos da floresta:
— Aqui
o mato gosta muito de crescer.
Nos
intervalos da machamba, nos sentávamos, eu e minha mãe, sob a brisa
do canhoeiro. Ela me segurava na mão enquanto falava. E desfolhava
seus lamentos: nossa tradição não autoriza uma criança a assistir
um funeral. Morte é visão de crescido. Só minha mãe, já
engrandecida, parecia não estar autorizada a ver minha própria
vida. E assentava, em consenso consigo:
— A
vida, meu filho, é uma desilusionista.
Em
fins de tarde, os flamingos cruzavam o céu. Minha mãe ficava
calada, contemplando o voo. Enquanto não se extinguissem os longos
pássaros ela não pronunciava palavra. Nem eu me podia mexer. Tudo,
nesse momento, era sagrado. Já no desfalecer da luz minha mãe
entoava, quase em surdina, uma canção que ela tirara de seu
invento. Para ela, os flamingos eram eles que empurravam o sol para
que o dia chegasse ao outro lado do mundo.
— Este
canto é para eles voltarem, amanhã mais outra vez!
Certa
vez, acordamos um pacto, com testemunho de Deus. Juntamos juras,
sagrados xicuembos: que eu lhe iria visitar no momento em que ela se
estivesse despedindo de viver. Pois, nesse intervalo de instante, ela
acreditava poder, enfim, me ver de rosto e corpo. E se fechou
combinação: em chegando a sua moribundição ela me avisaria. Eu
acorreria e ela, finalmente, me havia de conhecer, olhos em olhos.
Passou-se
o tempo e eu saí da terra nossa, encorajado pelo padre Muhando. Na
cidade, eu tinha acesso à carteirinha das aulas. A escola foi para
mim como um barco: me dava acesso a outros mundos. Contudo, aquele
ensinamento não me totalizava. Ao contrário: mais eu aprendia, mais
eu sufocava. Ainda me demorei por anos, ganhando saberes precisos e
preciosos.
Na
viagem de regresso não seria já eu que voltava. Seria um quem não
sei, sem minha infância. Culpa de nada. Só isto: sou árvore
nascida em margem. Mais lá, no adiante, sou canoa, a fugir pela
corrente; mais próximo sou madeira incapaz de escapar do fogo.
Um
dia, o juramento de minha velha mãe cumpriu seu serviço. Vieram me
chamar, às emergências: minha mãe se estava despegando da alma.
Viajei nos costados de um velho camião. Chegado à vila acorri num
bater de pestana. Tinha que chegar antes que ela desmundasse. Cheguei
tarde? No coração envelhecido de uma mãe, os filhos regressam
sempre tarde. Ela me pegou na mão e fechou os olhos como se fosse
por eles que respirasse. Estava tão parada, tão sem brisa no peito,
que me afligi. Os outros me sossegaram:
— Está
só a fingir de falecida. Só para Deus ter pena dela.
Mas
não era esse fingimento. Ninguém sabia que ela, conforme esse
desmaio, me tinha finalmente alcançado em sua visão. Ela me focava,
tal qual minhas conformidades. Seu rosto se engelhou, em ilegível
sorriso:
—
Afinal, você é parecido com ele...
— Com
meu pai?
Ela
voltou a sorrir, fosse quase em suspiro, enquanto repetia:
— Com
ele...
Me
apertou as mãos, em espasmo. A pálpebra já se desenhava em
estalactite. A morte é uma brevíssima varanda. Dali se espreita o
tempo como a águia se debruça no penhasco — em volta todo o
espaço se pode converter em esplêndida voação.
— Mãe?
Quem é ele?
Eu
lhe perguntava isso só para fazer conta que não notara que ela já
desvivia. Eu queria era pequeninar tristeza. Fiquei com o corpo de
minha mãe encostando uma leveza no meu peito, semelhando uma folha
tombando do imbondeiro. Ela falecera nesse instante em que iniciava a
contemplação de mim. Seria verdade que me chegara ver? Nem isso já
contava para nenhuma importância. O que era preciso era avisar meu
pai desse desacontecimento.
Nossa
gente não vive sem tratar os do lado de lá, passados a poente fino.
Habitamos assim: a vida a oriente, a morte a ocidente. A morte, a
morte mais sua inexplicável utilidade! Minha mãe partira na curva
da chuva, saindo a habitar a estrela de nenhumas pontas. A partir de
então, a vida já não lhe comparecia: ela apanhara o último
desencontrão. Ainda lembrei suas palavras amadurecendo uma esperança
para mim quando eu de tudo descria:
— Não
vê os rios que nunca enchem o mar? A vida de cada um também é
assim: está sempre toda por viver.
E
agora, por não consequência, eu partia para encontrar meu pai. Onde
ele pairava? Se mantinha ali nos arredores do nosso distrito, incapaz
do longe, inapto para o perto? Alugaria ainda seu velho barco aos
pescadores da foz do rio? Eu esperava que sim, causa do afeto que
ganhara pelo barquinho, as vezes que permanecera sob cuidados
paternos. Fora eu que nomeara o bote: o barco-irís. E lá me
encimava na proa, ondarilhando por aquelas águas. Quando construíram
a barragem, o rio ficou mais ensinado e o estuário se adocicou,
oferecido a navegações todo o ano.
De
todas as vezes que fui visitar meu pai eu me entreguei à vida do
povo dali. Ajudei na faina, puxei rede, espetei polvo, amarrei
embarcação. Meu pai me recebia satisfeito na praia. Nunca quis
saber sobre meus cansaços. Ele tinha ideia muito dele sobre o
trabalho. Para ele, o barco é que fazia andar o remo. Em toda sua
vida, ele só andara pelos interiores. Era um sabedor de matos,
ignorante de oceano.
Nesse
tempo, eu ainda tinha o corpo todo vivo, estava ali para as crenças
e nascenças. De noite, ante a crepintação da fogueira, o velho
Sulplício me pedia para relatar minhas aventuras na barqueação. E
sorria, defendendo suas incapacidades em assuntos marinhos:
— O
camarão anda na água e não sabe nadar.
Depois
dos conflitos que tivera com a administração, meu velho não
guardava boa ideia do trabalho. Antes, ele acreditara no poder de o
trabalho criar futuro. Perdera essa crença. Em ano recente, até
decidiu envergar pijama para toda a vida. Apenas de noite, quando o
pijama devia cumprir seus congênitos serviços, ele se libertava do
vestuário. Despia-se para dormir.
— Mas
pai, de pijama durante o dia?
É
que se dava o caso de ele dormitar aqui e acolá, encostado mesmo à
mais brava claridade. Assim, com tal indumentária, ele estava bem
adequado a esses cabeceios. Mas não era apenas o caso do pijama: o
velho se aumentava de manias que contrariavam a gente universal.
Como, noutro exemplo: só no domingo ele calçava. Nos restantes
dias, os da semana, seus pés terreavam, satisfeitos por acariciarem
o infinito do chão. Fim do dia, derramava um chá morno sobre as
pernas. Os pés nus numa bacia se encharcavam, em banho de repouso.
— Estou
a dar-lhes de beber — e se ria.
Minha
velhota muito se irritava com aquele desacostumado uso. A
esquisitice, porém, tinha uma razão: ele andava descalço para não
gastar seu único par de sapatos. Trazia-os pendurados pelas mãos,
mas sem nunca os envergar enquanto marchasse. Calçava-os apenas
depois, quando já estava parado em pose de senhor.
Aqueles
momentos junto ao meu velhote me puxavam para um incerto sono, quem
sabe isso que chamam de ternura fosse aquele amaciamento. Esses
breves tempos foram, hoje eu sei, a minha única casa. No estuário
onde meu velho deitara seu existir eu inventava minha nascente.
Todavia,
as visitas à foz do rio foram breves e poucas, simples relampejos de
lembrança. Minha mãe acabou proibindo essas más influências dele.
Meu velho que pagasse em isolamento sua irresponsabilidade. Ela se
vingava da deserção dele. Quando se retirou da família, ele, por
um tempo, ainda vagabundeou por ali. Depois, se instalara nos
arredores da vila, fazendo de sua vida o que fazemos com o lençol:
dobram-se as pontas e enterram-se sob o colchão. Nós nunca víamos
as pontas do seu viver, nem a direção que dava à sua existência.
Isso era mistério oculto por baixo dele mesmo. Começou a dar sinais
de si apenas quando já eu era bem menino. E passou a nos visitar,
vezes enquanto. Se deixava ficar uns dias. Nunca reparei se dormia em
qual quarto. No fundo, eu desejava guardar a ilusão de que ele e
minha mãe ainda dividiam as noites num só teto.
Manhã
seguinte, ele me conduzia por um desmatado. Não ia muito longe. Ali,
junto a um enorme morro de muchém, ele parava. Se anichava rente ao
chão e acariciava a termiteira. Depois, se erguia e apontava para
além de uns frondosos konones:
— Está
ver aquele caminhozito?
Eu
não via senão as folhagens. A savana ali se fechava em verdes. Não
adiantava apurar as vistas. Os dois tínhamos medo de ir mais longe.
Mas ele apontava a distância e me repisava a advertência:
—
Quando chegar o fim do mundo você
toma este carreirinho. Está a ouvir?
Conselho
que nunca quereria cumprir. Mas que não podia depositar dúvida. Que
ele sabia que era certo e certeiro o final da humanidade.
Tudo
isso eu lembrava quando cheguei à praia de Inhamudzi onde meu velho
se exilara. O lugar não era distante e eu viajara mais lembranças
que quilometros. Desta vez, eu vinha quase sem mim, parecia um
desqualquerficado. Meus saberes de cidade serviam para quê? Aqueles
caminhos tinham serviços que não eram os mesmos das ruas urbanas:
pareciam feitos apenas para passarem sonhos e poentes.
Aquelas
estreitas ruinhas aliviavam a tristeza da terra dando caminho ao
último sol, em direção aos secretos recantos de nossa alma.
Circulei por ali. Procurei entre as tendas e casinhas de caniço. Não
havia sinal dele, apenas dicências, istos-aquilos. O velho
Sulplício, sabia ele de sua própria realidade?
Finalmente
o descobri. Meu pai, o que lhe tinha sido feito? Estava magrito,
esgazelado, parecia que até a alma lhe era uma coisa externa. Desde
minha última visita ele se inquilinara num escuro, no oco de um
velho farol. Tinha-se tornado faroleiro. Subira a ocupar um farol
desempregado, já nenhum barco usava aqueles caminhos de saída para
o mar.
Contudo,
o velho se levava a sério em sua nova profissão. Aquilo pedia muita
atenção: focar o infinito, fiscal do horizonte. Se em toda a vida
ele inspecionara e policiara a savana! Agora, ele simplesmente mudava
o objeto de sua vigilância. Seria por isso que fazia de conta que eu
era invisível quando falei:
— Pai,
eu trago notícias tristes de Tizangara.
Com
um gesto firme me ordenou silêncio. Que ele se concentrava na
ventania. Espreitou o horizonte e sacudiu a cabeça:
—
Lembra que eu andava a aprender idioma
da passarada? Pois, sua mãe nunca me autorizou.
— Pai,
me escute...
—
Agora, meu filho, eu já não falo
nenhuma língua, falo só sotaques. Entende?
Eu
não entendia nada. Meu pai variava sem formato no pensamento. Meu ar
sério, insistindo no assunto que ali me trazia, rapidamente o
indispôs.
— Você
dá-me lembrança de sua mãe: nunca entende. Isso como irrita!
No
mais, ele recusou escutar. Categórico, abanou a mão a decepar-me as
falas.
— Volta
para lá, eu não quero ouvir nada do que você vem aqui falar...
— Mas
pai, a mãe...
— Não
quero ouvir...
Escutei
seus passos subindo a escada encaracolada. De repente, parou. A sua
voz, deformada, me chegou:
— É
estranho. Por aqui já não se ouvem tiros!
— Pai,
a guerra já acabou.
— Você
se acredita nisso?
Já
eu seguia o caminho de retorno, quando a sua voz pairou sobre mim.
Falava da janela da torre.
—
Lembra o carreirinho por trás da
nossa casa? Pois, não esqueça: se o mundo terminar, de repente,
você sai por esse caminho.
Mia
Couto, in O
último voo do flamingo
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