O
certo agora era não insistir. Quanto mais tentassem demovê-lo, mais
encasquetado ele ficava. A única esperança era que ele mesmo
mudasse de ideia, ou esquecesse o assunto no sono, como acontecera em
outras ocasiões. De mais a mais, ninguém ali era tutor de Amâncio,
se ele queria mesmo caçar sarna, que se coçasse sozinho depois.
No
dia seguinte cedo, vestido de branco, de chapéu branco já meio
amarelado e batina de couro cru, Amâncio passou em casa de Manuel
Florêncio no largo. Queria que Manuel pusesse os olhos na venda de
vez em quando e disse que não ia demorar. Olhando Amâncio
discretamente e não notando sinal de arma debaixo da roupa, Manuel
ficou descansado. O caso ficava dependendo dos homens, do trato que
eles dessem a Amâncio.
— Já
tomou café? Tome café primeiro. Ainda está quente. — Carece não.
Comi uma talhada de queijo e tomei umas coisas por cima. Vou andando
para aproveitar a fresca.
Manuel
Florêncio ia aparelhar umas tábuas de porta, não conseguiu
começar. Aquela ideia de Amâncio não estava condizendo. Vamos que
os homens não gostassem e o recebessem com quatro pedras: quem é
que ia ter mais sossego na cidade por muitos dias? Isso de mexer com
quem está quieto pode chamar tempestade. A menos que Amâncio
estivesse só fazendo fita. Se ele voltasse dizendo que tinha entrado
na tapera, conversado e arrotado, feito e acontecido, trançado e
chacoalhado, convinha não mostrar descrença: porque aí ele podia
se ver na obrigação de ir mesmo e fazer tudo o que havia inventado;
a coragem falseada na primeira vez tinha de ser arranjada de qualquer
maneira na segunda.
Manuel
Florêncio chegou na porta, olhou para o cartório em frente, lá na
rua de cima. Muita gente nas janelas, outros do lado de fora,
olhando, gesticulando. De lá se via a estrada depois da ponte, os
pastos, a tapera meio escondida entre árvores. Manuel largou o
serviço e subiu o largo, chegou ao cartório quando Amâncio dobrava
a quina da cerca.
— Ele
vai mesmo. Aquele tira leite em onça.
— E
vai entrar pela frente, o danado.
— É
agora. Se voltar logo é porque foi escorraçado.
O
chapéu branco de Amâncio desapareceu atrás do capim alto da beira
da cerca, reapareceu mais adiante, tornou a sumir.
— Eu
não disse que ele ia? Amâncio tem partes.
Agora
tudo podia acontecer. Uns achavam que não ia haver nada, os homens
recebiam Amâncio na porta, conversavam por alto e despachavam; ele
voltaria dizendo que estivera lá e conversara (não estaria
mentindo) e o resto seria inventado no caminho de volta. Já outros
diziam que Amâncio não era homem para ser despachado da porta de
ninguém, mormente quando chegava vestido de cerimônia. Para
sossegar os apreensivos, Manuel Florêncio informou que estivera com
Amâncio na hora da saída e que não vira nele volume de arma.
— Não
obsta. Ele pode voltar e apanhar a carabina. Ainda ontem andou
engraxando ela.
Ouvindo
isso, Manuel marcou a intenção de consumir com a carabina antes que
Amâncio voltasse.
Nisso
Geminiano apareceu lá embaixo com a primeira carroça de areia. Os
que estavam no cartório despencaram para ele saltando buracos, o
rego, as aparas de lata despejadas da oficina de João José.
— Ele
foi. Amâncio foi. Está lá — gritavam sem fôlego.
— Foi
aonde? — perguntou Geminiano meio assustado com a zoeira.
— Foi
conversar com os homens. Já está lá.
—
Conversar? Não vai ter com quem. O tempo
lá é curto.
— Está
lá conversando.
— Só
eu vendo.
— Pois
é. Veja se bispa alguma coisa.
Geminiano
não deu resposta, apenas fez um ruído chiado com os lábios, o que
as pessoas interpretaram como sinal de desdém pela incumbência, mas
o Serrote entendeu como ordem para ir andando.
Olhando
a carroça a se distanciar, as rodas ferradas mordendo o chão, alta
de areia, a pá cravada em cima para o trabalho de descarga, muita
gente teve inveja daquela geringonça bamboleante, que em pouco tempo
estaria entrando num território nebuloso, que eles só conheciam de
longe.
Manuel
Florêncio voltou à oficina, mexeu nas tábuas, não conseguiu
engrenar serviço. Lembrou-se do pedido de Amâncio, agarrou-se à
desculpa. Como poderia ele trabalhar e ao mesmo tempo vigiar a venda?
A
porta da venda estava apenas encostada, deixando uma fresta que o
vento do beco reduzia e alargava, rangendo as dobradiças. Manuel
empurrou-a, entrou piscando para acostumar a vista à penumbra,
raspou a cabeça num cacho de bananas pendurado de um caibro. Um rato
chiou no escuro e desapareceu num amontoado de enxadas. Se Amâncio
não tomasse vergonha e armasse umas ratoeiras, ainda ia ter de pedir
licença aos ratos para lidar na venda. Nunca se viu pessoa mais
desmazelada. Dormindo ali mesmo nos fundos, entre sacos e caixotes de
mantimentos, como é que tinha coragem de deixar a rataria andar
livre por toda a parte?
Manuel
Florêncio escancarou a porta, calçou-a com um machado apanhado do
monte, abriu as janelas. O ar novo entrou ligeiro balançando baldes,
cafeteiras, réstias de cebola, rédeas e cordas de sedenho, uns dois
arreios. O chão precisava de vassoura, o balcão precisava de uma
limpeza com pano molhado para tirar aquelas argolas de fundo de copo
de cachaça, os derramados de açúcar, a gordura salgada dos pesos
de carne-seca, os farelos de rapadura e farinha. Manuel apanhou
vassoura e água, borrifou o chão para não levantar poeira e
começou a limpeza.
A
freguesia foi aparecendo esparsa, pingando. Um menino queria uma
rapadura bem clara para fazer doce de cidra, só servia bem clara,
era recomendação da mãe. Manuel mandou o menino escolher ele
mesmo, e continuou varrendo, de vez em quando se abaixando para
apanhar um coco, um rolo de fumo, um par de chinelas escorregado da
pilha. Uma velhinha pretinha, encolhidinha, trêmula no falar e no
estar, queria meia quarta de fumo para mascar, mas seu Amâncio
fizesse a caridade de medir bem medido. Manuel larga a vassoura,
torce e quebra com as mãos um palmo grande de fumo, dá à velhinha.
Ela cheira, morde um pedaço para ver se serve, começa a desamarrar
o lenço. Manuel segura o punho velhinho, franzino, cinzento.
— Não
precisa, minha vó. É presente.
Ela
ajunta fumo, lenço e dinheiro depressa, tremendo.
— Nosso
Senhor lhe pague, seu Amâncio. Nosso Senhor lhe pague muito. — E
sai enfiando fumo e lenço de qualquer jeito no bolso da saia.
Chegam
outras pessoas, homens, para conversar.
— Epa,
seu Manuel. Está de vendeiro?
Manuel
explica a razão de estar ali, quer saber se já chegaram notícias
de Amâncio. Ninguém sabe nada ainda, mas o clima é de otimismo: a
demora é bom sinal, sinal de conversa; e conversa demorada, briga
adiada.
Vai
chegando mais gente, sentam-se nos sacos, mas respeitam os de farinha
e evitam os de sal, até nos rolos de arame se sentam, com as pernas
avançadas por causa das farpas, uns apanham punhados de amendoim de
um saco, vão comendo e guardando as cascas no bolso para esconder
estrago, outros comem farinha ou mastigam milho, feijão, o que
estiver mais perto, e sopram os pedaços no chão.
Acabada
a limpeza, Manuel senta-se de banda no balcão, uma perna pendurada,
outra assentada. A conversa se anima.
—
Amâncio agiu certo. Para saber se numa
moita tem onça é preciso chegar perto. Se a gente fica espiando de
longe, nunca sabe se o bicho que está lá é onça mesmo ou um
veadinho manso, desses que comem na mão. Tirando Geminiano, que
agora deu pra esconder leite, quem é que já viu esses homens de
perto, para poder dizer se são onça ou veado?
Quem
falou isso foi Dildélio Amorim, na sua linguagem de caçador.
José
J. Veiga, in A hora dos ruminantes
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