— Esse
caso que vossemecê escorreu é uma beleza, seu Alexandre, opinou seu
Libório. E eu fiquei pensando em fazer dele uma cantiga para cantar
na viola.
— Boa
ideia, concordou o cego preto Firmino. Era o que seu Libório devia
fazer, que tem cadência e sabe o negócio. Mas aí, se me dão
licença... Não é por querer falar mal, não senhor.
— Diga,
seu Firmino, convidou Alexandre.
— Pois
é, tornou o cego. Vossemecê não se ofenda, eu não gosto de
ofender ninguém. Mas nasci com o coração perto da goela. Tenho
culpa de ter nascido assim? Quando acerto num caminho, vou até
topar.
—
Destampe logo, seu Firmino, resmungou
Alexandre enjoado. Para que essas nove-horas?
—
Então, como o dono da casa manda, lá
vai tempo. Essa história da onça era diferente a semana passada.
Seu Alexandre já montou na onça três vezes, e no princípio não
falou no espinheiro.
Alexandre
indignou-se, engasgou-se, e quando tomou fôlego, desejou torcer o
pescoço do negro:
— Seu
Firmino, eu moro nesta ribeira há um bando de anos, todo o mundo me
conhece, e nunca ninguém pôs em dúvida a minha palavra.
— Não
se aperreie não, seu Alexandre. É que há umas novidades na
conversa. A moita de espinho apareceu agora.
— Mas,
seu Firmino, replicou Alexandre, é exatamente o espinheiro que tem
importância. Como é que eu me iria esquecer do espinheiro? A onça
não vale nada, seu Firmino, a onça é coisa à toa. Onças de bom
gênio há muitas. O senhor nunca viu? Ah! Desculpe, nem me lembrava
de que o senhor não enxerga. Pois nos circos há onças bem
ensinadas, foi o que me garantiu meu mano mais novo, homem sabido,
tão sabido que chegou a tenente de polícia. Acho até que as onças
todas seriam mansas como carneiros, se a gente tomasse o trabalho de
botar os arreios nelas. Vossemecê pensa de outra forma? Então sabe
mais que meu irmão tenente, pessoa que viajou nas cidades grandes.
Cesária
manifestou-se:
— A
opinião de seu Firmino mostra que ele não é traquejado. Quando a
gente conta um caso, conta o principal, não vai esmiuçar tudo.
—
Certamente, concordou Alexandre. Mas o
espinheiro eu não esqueci. Como é que havia de esquecer o
espinheiro, uma coisa que influiu tanto na minha vida?
Aí
Alexandre, magoado com a objeção do negro, declarou aos amigos que
ia calar-se. Detestava exageros, só dizia o que se tinha passado,
mas como na sala havia quem duvidasse dele, metia a viola no saco.
Mestre Gaudêncio curandeiro e seu Libório cantador procuraram com
bons modos resolver a questão, juraram que a palavra de seu
Alexandre era uma escritura, e o cego preto Firmino desculpou-se
rosnando.
—
Conte, meu padrinho, rogou Das Dores.
Alexandre
resistiu meia hora, cheio de melindres, e voltou às boas.
— Está
bem, está bem. Como os amigos insistem...
Cesária
levantou-se, foi buscar uma garrafa de cachimbo e uma xícara.
Beberam todos, Alexandre se desanuviou e falou assim:
—
Acabou-se. Vou dizer aos amigos como
arranjei este defeito no olho. E aí seu Firmino há de ver que eu
não podia esquecer o espinheiro, está ouvindo? Prestem atenção,
para não me virem com perguntas e razões como as de seu Firmino.
Ora muito bem. Naquele dia, quando o pessoal lá de casa cobrou a
fala, depois do susto que a onça tinha causado à gente, meu pai
reparou em mim e botou as mãos na cabeça: — “Valha-me, Nossa
Senhora. Que foi que lhe aconteceu, Xandu?” Fiquei meio besta, sem
entender o que ele queria dizer, mas logo percebi que todos se
espantavam. Devia ser por causa da minha roupa, que estava uma
lástima, completamente esmolambada. Imaginem. Voar pela capueira no
escuro, trepado naquele demônio. Mas a admiração de meu pai não
era por causa da roupa, não. — “Que é que você tem na cara,
Xandu?” perguntou ele agoniado. Meu irmão tenente (que naquele
tempo ainda não era tenente) me trouxe um espelho. Uma desgraça,
meus amigos, nem queiram saber. Antes de me espiar no vidro, tive uma
surpresa: notei que só distinguia metade das pessoas e das coisas.
Era extraordinário. Minha mãe estava diante de mim, e, por mais que
me esforçasse, eu não conseguia ver todo o corpo dela. Meu irmão
me aparecia com um braço e uma perna, e o espelho que me entregou
estava partido pelo meio, era um pedaço de espelho. “Que
trapalhada será esta?” disse comigo. E nada de atinar com a
explicação. Quando me vi no caco de vidro é que percebi o negócio.
Estava com o focinho em miséria: arranhado, lanhado, cortado, e o
pior é que o olho esquerdo tinha levado sumiço. A princípio não
abarquei o tamanho do desastre, porque só avistava uma banda do
rosto. Mas virando o espelho, via o outro lado, enquanto o primeiro
se sumia. Tinha perdido o olho esquerdo, e era por isso que enxergava
as coisas incompletas. Baixei a cabeça, triste, assuntando na
infelicidade e procurando um jeito de me curar. Não havia curandeiro
nem rezador que me endireitasse, pois mezinha e reza servem pouco a
uma criatura sem olho, não é verdade, seu Gaudêncio? Minha família
começou a fazer perguntas, mas eu estava zonzo, sem vontade de
conversar, e saí dali, fui-me encostar num canto da cerca do curral.
Com a ligeireza da carreira, nem tinha sentido as esfoladuras e o
golpe medonho. Como é que eu podia saber o lugar da desgraça?
Calculei que devia ser o espinheiro e logo me veio a ideia de
examinar a coisa de perto. Saltei no lombo de um cavalo e larguei-me
para o bebedouro, daí ganhei o mato, acompanhando o rasto da onça.
Caminhei, caminhei, e enquanto caminhava ia-me chegando uma
esperança. Era possível que não estivesse tudo perdido. Se
encontrasse o meu olho, talvez ele pegasse de novo e tapasse aquele
buraco vermelho que eu tinha no rosto. A vista não ia voltar,
certamente, mas pelo menos eu arrumaria boa figura. À tardinha
cheguei ao espinheiro, que logo reconheci, porque, como os senhores
já sabem, a onça tinha caído dentro dele e havia ali um estrago
feio: galhos rebentados, o chão coberto de folhas, cabelos e sangue
nas cascas do pau. Enfim um sarapatel brabo. Apeei-me e andei uma
hora caçando o diacho do olho. Trabalho perdido. E já estava
desanimado, quando o infeliz me bateu na cara de supetão, murcho,
seco, espetado na ponta de um garrancho todo coberto de moscas.
Peguei nele com muito cuidado, limpei-o na manga da camisa para tirar
a poeira, depois encaixei-o no buraco vazio e ensanguentado. E foi um
espanto, meus amigos, ainda hoje me arrepio. Querem saber o que
aconteceu? Vi a cabeça por dentro, vi os miolos, e nos miolos muito
brancos as figuras de pessoas em que eu pensava naquele momento. Sim
senhores, vi meu pai, minha mãe, meu irmão tenente, os negros, tudo
miudinho, do tamanho de caroços de milho. É verdade. Baixando a
vista, percebi o coração, as tripas, o bofe, nem sei que mais.
Assombrei-me. Estaria malucando? Enquanto enxergava o interior do
corpo, via também o que estava fora, as catingueiras, os mandacarus,
o céu e a moita de espinhos, mas tudo isso aparecia cortado, como já
expliquei: havia apenas uma parte das plantas, do céu, do coração,
das tripas, das figuras que se mexiam na minha cabeça. Refletindo,
consegui adivinhar a razão daquele milagre: o olho tinha sido
colocado pelo avesso. Compreendem? Colocado pelo avesso. Por isso
apanhava os pensamentos, o bofe e o resto. Tenho rolado por este
mundo, meus amigos, assisti a muita embrulhada, mas essa foi a maior
de todas, não foi, Cesária?
— Foi,
Alexandre, respondeu Cesária levantando-se e acendendo o cachimbo de
barro no candeeiro. Essa foi diferente das outras.
— Pois
é, continuou Alexandre. Só havia metade das nuvens, metade dos
urubus que voavam nelas, metade dos pés de pau. E do outro lado
metade do coração, que fazia tuque, tuque, tuque, metade das tripas
e do bofe, metade de meu pai, de minha mãe, de meu irmão tenente,
dos negros e da onça, que funcionavam na minha cabeça. Meti o dedo
no buraco do rosto, virei o olho e tudo se tornou direito, sim
senhores. Aqueles troços do interior se sumiram, mas o mundo
verdadeiro ficou mais perfeito que antigamente. Quando me vi no
espelho, depois, é que notei que o olho estava torto. Valia a pena
consertá-lo? Não valia, foi o que eu disse comigo. Para que bulir
no que está quieto? E acreditem vossemecês que este olho
atravessado é melhor que o outro.
Alexandre
bocejou, estirou os braços e esperou a aprovação dos ouvintes.
Cesária balançou a cabeça, Das Dores bateu palmas e seu Libório
felicitou o dono da casa:
— Muito
bem, seu Alexandre, o senhor é um bicho. Vou botar essas coisas em
cantoria. O olho esquerdo melhor que o direito, não é, seu
Alexandre?
— Isso
mesmo, seu Libório. Vejo bem por ele, graças a Deus. Vejo até
demais. Um dia destes apareceu um veado ali no monte...
O
cego preto Firmino interrompeu-o:
— E
a onça? Que fim levou a onça que ficou presa no mourão, seu
Alexandre?
Alexandre
enxugou a testa suada na varanda da rede e explicou-se:
— É
verdade, seu Firmino, falta a onça. Ia-me esquecendo dela. Ocupado
com um caso mais importante, larguei a pobre. A onça misturou-se com
o gado, no curral, mas começou a entristecer e nunca mais fez ação.
Só se dava bem comendo carne fresca. Tentei acostumá-la a outra
comida, sabugo de milho, caroço de algodão. Coitada. Estranhou a
mudança e perdeu o apetite. Por fim ninguém tinha medo dela. E a
bicha andava pelo pátio, banzeira, com o rabo entre as pernas, o
focinho no chão. Viveu pouco. Finou-se devagarinho, no chiqueiro das
cabras, junto do bode velho, que fez boa camaradagem com a infeliz.
Tive pena, seu Firmino, e mandei curtir o couro dela, que meu irmão
tenente levou quando entrou na polícia. Perguntem a Cesária.
— Não
é preciso, respondeu seu Libório cantador. Essa história está
muito bem amarrada. E a palavra de seu Alexandre é um evangelho.
Graciliano
Ramos, in Histórias de Alexandre
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