Tinham-se
passado cinco anos desde que Marta, Ntunzi e Zacaria partiram. Um
certo dia, Aproximado me chamou à sala onde se encontravam Noci e
alguns garotos da vizinhança. Em cima da mesa estava um bolo com
velas espetadas na cobertura de açúcar branco.
— Conte
as velas
— ordenou-me o Tio.
— Para
quê?
—
Conte.
— São
dezesseis.
— É
a sua idade
—
disse Aproximado. —
E
hoje é o seu aniversário.
Nunca
antes me fizeram uma festa de anos. A bem dizer, nem me ocorria haver
um dia em que eu nascera. Mas eis que ali, na sala sombria de nossa
casa, a mesa estava posta com bolos e refrescos, decorada com fitas e
balões. Sobre a cobertura do bolo estava escrito o meu nome.
Foram
buscar o meu velho e sentaram-no junto a mim. Um por um, os
convidados me entregaram prendas que desajeitadamente eu ia
empilhando na cadeira ao lado. De repente, começaram a cantar e
bater palmas. Percebi que, por um instante, era o centro do
universo. Por instrução de Aproximado, apaguei, de um sopro, as
velas. Nesse momento meu pai saiu da imobilidade e, sem que ninguém
notasse, me apertou o braço. Era o seu modo de mostrar carinho.
Horas
depois, de regresso ao quarto, Silvestre se internou de novo na sua
habitual concha. Desde havia cinco anos que era eu quem tratava dele,
quem o conduzia pelas trivialidades do dia-a-dia e o ajudava a comer
e a lavar-se. Quem tratava de mim era o Tio Aproximado.
Frequentemente, esse parente se sentava frente a Silvestre e, depois
de um longo confronto de olhares, se interrogava em voz alta:
— Você
não está a fingir-se maluco apenas para não me pagar as dívidas?
No
rosto de Vitalício não se vislumbrava rabisco de resposta. Eu
chamava o Tio à razão: como podia aquele teatro ser tão
convincente e duradouro?
— É
que são dívidas antigas, que datam de Jesusalém. Havia anos que
seu pai já não pagava as mercadorias.
— Para
não falar do resto
— acrescentava.
Aproximado
nunca explicou em que consistia esse “resto”. E a lamentação
prosseguia, sempre igual: que o cunhado nunca imaginou como era
difícil viajar pela estrada para Jesusalém. Nem quanto o camionista
precisava pagar para evitar emboscadas e escapar dos assaltos.
Segredo da sobrevivência, alvitrava, é almoçar com o diabo e comer
os restos com os anjos. E concluía, puxando lustro à esperteza:
— É
bem feito para mim. Comércio dentro da família é o que dá…
— Eu
posso pagar, Tio.
— Pagar
o quê?
— As
dívidas...
— Não
me faça rir, sobrinho.
Se
havia dívidas, a verdade é que Aproximado não se vingava em mim.
Pelo contrário, me protegia como a um filho que nunca teve. Não
fosse por ele e eu nunca teria frequentado a escola do bairro. Não
mais esquecerei o meu primeiro dia de aulas, o estranho sentimento de
ver tantos meninos sentados numa mesma sala. Mais estranho ainda: era
um livro que nos unia horas a fio, tecendo infâncias num mundo
envelhecido. Durante anos eu me concebera como o único menino no
universo. E durante uma vida essa solitária criança esteve
interdita de olhar um livro. Por isso, desde a primeira lição,
enquanto tabuada e abecedário fluíam na sala, eu acariciava os
cadernos e me recordava do meu baralho de cartas.
O
fascínio pelas aulas não passou desapercebido ao professor. Era um
homem magro e seco, olhos cavos e envelhecidos. Falava com paixão
sobre a injustiça e contra os novos-ricos. Uma tarde, levou a turma
a visitar o local onde um jornalista que denunciara os corruptos
tinha sido assassinado. No local, não havia monumento nem nenhum
sinal de homenagem oficial. Apenas uma árvore, um cajueiro
eternizava a coragem de quem arriscou a vida contra a mentira.
—
Deixemos
flores neste passeio para limpar o sangue; flores para lavar a
vergonha.
Foram
essas as palavras do professor. Com o dinheiro do nosso mestre
compramos flores e com elas cobrimos o passeio. No caminho de
regresso, o professor seguia à minha frente e eu o vi tão sem peso
que receei que, como um papagaio de papel, partisse em voo pelos
céus.
Mia
Couto, in Antes de nascer o sol
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