Que
tempo é o nosso? Há quem diga que é um tempo a que falta amor.
Convenhamos que é, pelo menos, um tempo em que tudo o que era nobre
foi degradado, convertido em mercadoria. A obsessão do lucro foi
transformando o homem num objeto com preço marcado. Estrangeiro a si
próprio, surdo ao apelo do sangue, asfixiando a alma por todos os
meios ao seu alcance, o que vem à tona é o mais abominável dos
simulacros. Toda a arte moderna nos dá conta dessa catástrofe: o
desencontro do homem com o homem. A sua grandeza reside nessa
denúncia; a sua dignidade, em não pactuar com a mentira; a sua
coragem, em arrancar máscaras e máscaras.
E
poderia ser de outro modo? Num tempo em que todo o pensamento
dogmático é mais do que suspeito, em que todas as morais se
esbarrondam por alheias à “sabedoria” do corpo, em que o
privilégio de uns poucos é utilizado implacavelmente para
transformar o indivíduo em “cadáver adiado que procria”, como
poderia a arte deixar de refletir uma tal situação, se cada
palavra, cada ritmo, cada cor, onde espírito e sangue ardem no mesmo
fogo, estão arraigados no próprio cerne da vida?
Desamparado
até a medula, afogado nas águas difíceis da sua contradição,
morrendo à míngua de autenticidade - eis o homem! Eis a triste,
mutilada face humana, mais nostálgica de qualquer doutrina teológica
que preocupada com uma problemática moral, que não sabe como fundar
e instituir, pois nenhuma fará autoridade se não tiver em conta a
totalidade do ser; nenhuma, em que espírito e vida sejam concebidos
como irreconciliáveis; nenhuma, enquanto reduzir o homem a um
fragmento do homem. Nós aprendemos com Pascal que o erro vem da
exclusão.
Eugênio
de Andrade, in Os afluentes do silêncio
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