Na
outra margem do lago, o arcebispo clama: “Uma maldição ameaça a
cidade!”, denuncia: “Os filhos renegam os pais!” Dois generais
acompanham o arcebispo até o aeroporto e na sala de espera uma
mulher puxa a túnica do sacerdote: pede a bênção, padre, que as
iguanas abandonem o telhado da minha casa e as dores meu corpo. Os
fotógrafos dos jornais rodeiam o arcebispo, o arcebispo transpira, a
mitra treme em sua cabeça.
Desta
margem, vazia, ergo o olhar e vejo o avião, o arcebispo atravessa as
nuvens e se perde no céu. Atrás de mim, no lago, junto com as
infinitas torres de ferro, ardem as chamas de gás e as perfuradeiras
continuam seu cabecear eterno, os cabos pendem dos bicos como baba de
petróleo. Aqui o sol arde com fúria e arranca da terra uma nuvem de
óleo e fumaça, cada vez mais espessa e mais difícil de atravessar.
Neste deserto negro, brilhoso de petróleo, não cresce pasto nem
cresce nada, não sobra nada: as solas das botas grudam no chão, mas
as marcas de meus passos se apagam, comidas pelo petróleo, antes de
fixarem sua impressão. Existem alguns cartazes rasgados, restos de
letras que disseram: “Cuidado. Não passe. Cachorro bravo”,
disseram: “É proibido jogar lixo”, disseram: “Terra Negra
reclama do Prometido”.
Aqui,
os pássaros não cantam: se queixam. Uns poucos patos flutuam, sem
se mover, nos charcos pantanosos. Os corvos são a última coisa viva
que restou para as palmeiras.
Já
estou completando noventa e sete. Estou chegando ao fim, mas quero
ver – não é? – se falo com o Senhor para conseguir mais um
tempinho.
Como
não vou lembrar de quando chegaram as companhias. Foi quando começou
a correr dinheiro. O pessoal daqui ainda trabalhava na terra,
naqueles anos, eu esqueço das datas, mas isto era muito bonito, os
homens pescavam no lago, bebiam água do lago. Naquela época, havia
capitães e doutores. Lá no lamaçal comíamos ovos de jacaré;
matávamos o jacaré, salgávamos sua carne e fazíamos guisadinho de
jacaré. Se éramos felizes? Ninguém é feliz. E quanto mais posição
tenha o homem, pior. Mas todos tínhamos vida própria e havia muita
união. Agora, a água está envenenada e vivemos encurralados entre
o gretão e o dique. A gente nova não fica por aqui, não cria
raízes. A garotada vai crescendo e indo embora.
Eu,
ir embora, não vou. Eu nasci aqui, me criei aqui e aqui estou,
sempre vendendo amendoim no estabelecimento “A Mão de Deus”,
como você está vendo, que antes era um lugarzinho que vendia comida
e onde o pessoal tinha seus bailinhos. Aqui eu fico. Minha filha foi
embora, ela sim, e é bem saidinha minha filha, me escreveu um verso
que diz: “É tanta a minha inteligência, que minhas improvisações
nascem das regiões azuis do firmamento”. Ela está na capital. Por
que não? Cada um vive da sua capacidade. E não me pergunte mais,
porque as escolas de antes só ensinavam a contar até cem.
Não
há nem ao menos porcos escavando o chão inchado de lixo. As moscas
me acossam, bêbadas de calor, zunindo forte, as moscas batem contra
minha cara, grudam em minha pele oleosa de suor. Gotas gordas de suor
pendem de minhas pestanas. Me deixo guiar pelo olfato. Estas ruínas
exalam um hálito de moribundo; os odores, cada vez mais azedos, vão
anunciando, enjoativos, o lugar onde o primeiro jorro de petróleo
brotou, há sessenta anos: o buraco. Parece que se passaram séculos
desde que se escutou por aqui o rumor dos últimos passos de um
homem, e agora só persistem os ruídos da demolição, o
desmoronamento de todas as coisas, o rodar das pedras caindo, mas
lento, lentíssimo, o moribundo está roncando e se escuta o cicio de
dentes de ratos que serrilham as madeiras e o muro, a lepra que
avança, lepra do tempo, o zumbido das moscas e o borboleteio do sol
que cozinha o lixo e faz ferver os charcos de petróleo, o estalido
das bolhas de petróleo inchando-se e arrebentando nestas marmitas, e
ao redor dos charcos de sopa negra o chiar da terra que racha, em
fendas abertas pelo calor, como rugas, ao longo e ao largo e até o
osso da cara da terra.
O
jorro brotara até as nuvens e o vento fez chover petróleo sobre a
comarca. Caía petróleo sobre os tetos de folhas de palmeiras das
casas e os lavradores e lenhadores e os caçadores se afogavam em
petróleo, atônitos, com os olhos fora das órbitas, porque nunca
tinham sabido que aquilo lhes fazia falta.
E
veio gente do oriente, do sul e do centro. Os camponeses jogavam aos
poços os laços e as foices e vinham pelo rio e através das selvas.
Os de Coro foram trazidos para o monte, para devastar os bosques a
golpes de facão e machado, e a serpente guayacán e a malária
acabaram com eles; os da ilha Margarida arrebentavam os pulmões
amarrando canos no fundo do lago.
Homens
de todas as cores e de todos os idiomas brotavam do mar em navios
negros, de proas de ferro. Apareceram as máquinas, de rodas dentadas
e lâminas brilhantes, melhores que os homens para resistir às
mordidas da serpente e às febres. As torres eram de madeira e depois
foram de ferro e brotavam uma ao lado da outra. Também trouxeram
automóveis, gramofones, mesas de pano verde e mulheres capazes de
fazer o amor vinte e cinco horas por dia: elas se chamavam Chavefixa,
Seteválvulas, Rompepregas, Tubulação. Depois da guerra, os bares
abandonaram Tasajeras e foram para Alta Gracia, depois chamada
Coréia, além de Lagunillas. Para lá se mudaram os bares enormes, e
lá estão; parecem prisões ou fortalezas. Quando caiu a ditadura,
surgiram no país revolvido as juntas pró-melhoras e as juntas
pró-desenvolvimento, e uma equatoriana, que tinha sido dama de alto
gabarito, organizou aqui uma greve de pernas fechadas. Se chamava
Monosábia. Elas triunfaram.
Desprendeu-se,
quebrou e se precipitou no vazio. Estes são os pedaços de uma única
coisa, hoje arrebentada, mas que foi. (Havia existido entusiasmo, e
luta, e vida viva.) Os restos: como um arrependimento: dentes de
guindastes forrados de ferrugem, cadáveres de automóveis, latas de
leite em pó Milk, óleo Diana, mata-baratas Efetan, suco de laranja
Ella, montanhas de latas, farrapos de um vestido de festa pendurados
num prego, cabines de camionetes sem camionetes, uma espuma de baba
seca sobre madeirames verdolengos, luvas de trabalho que perderam os
dedos, pneus para medir a pressão, sapatos afogados em barro, ossos
de galinhas e cachorros, seringas, um cadillac reduzido a mofo,
cascas de coco, fiapos de capas de chuva, um ônibus sem rodas nem
paralamas afundado contra um arbusto e que agora forma parte desse
arbusto com os tirantes do teto ao vento como vértebras ou galhos
secos, elásticos de poltronas, garrafas com seus bicos em cacos,
sucatas de guindastes e de perfuradeiras, monstros em papelão
cinzento que antes foram caixas de Veuve Clicquot ou Ye Monks e agora
têm mandíbulas e braços e estão encolhidos e à espreita, fios
negros de cascas de banana, vegetação podre, peles de vacas sem
vacas e acossadas por exércitos de moscas, taladros abandonados com
suas bases de cimento como ruínas indígenas depois de um incêndio,
com hordas de vermes surgindo debaixo de cada coisa, um letreiro de
Cafenol, o camelo de Camel, a moldura de argamassa de um alto-relevo
com três dedos de uma mão e a boca de uma cara, pilares de estuque,
um muro desfeito de onde pendura-se uma língua de papel florido, um
busto de manequim erguido sobre os escombros, alçando-se, deusas de
gesso, sem braços nem pernas, com uma cara de despeito e os poucos
cabelos ainda grudados no crânio: ela sorri.
É
uma armadilha, penso. Não me movo. Estou rodeado de lixo pelo norte
e pelo sul, o lixo me toma de assalto de leste a oeste. E o lixo que
avança, não eu, ou talvez, seja esse fedor a fermento e tripas em
decomposição que me encurralam e me vão traçando para asfixiar-me
e eu penso que é uma cilada, o primeiro poço de petróleo não
existiu nunca, nunca houve, nunca poderei sair daqui, não sei por
onde vim e não há estrelas para me guiarem. Me deixo cair sob o sol
em chamas e com a cabeça apertada entre o joelho rogo que caiam em
cima de mim a noite ou a chuva.
Eduardo
Galeano, in Vagamundo
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