Vejo-a
assomar à porta da alcova, pálida, comovida, trajada de preto, e
ali ficar durante um minuto, sem ânimo de entrar, ou detida pela
presença de um homem que estava comigo. Da cama, onde jazia,
contemplei-a durante esse tempo, esquecido de lhe dizer nada ou de
fazer nenhum gesto. Havia já dois anos que nos não víamos, e eu
via-a agora não qual era, mas qual fora, quais fôramos ambos,
porque um Ezequias misterioso fizera recuar o sol até os dias
juvenis. Recuou o sol, sacudi todas as misérias, e este punhado de
pó, que a morte ia espalhar na eternidade do nada, pôde mais do que
o tempo, que é o ministro da morte. Nenhuma água de Juventa
igualaria ali a simples saudade.
Creiam-me,
o menos mau é recordar; ninguém se fie da felicidade presente; há
nela uma gota da baba de Caim. Corrido o tempo e cessado o espasmo,
então sim, então talvez se pode gozar deveras, porque entre uma e
outra dessas duas ilusões, melhor é a que se gosta sem doer.
Não
durou muito a evocação; a realidade dominou logo; o presente
expeliu o passado. Talvez eu exponha ao leitor, em algum canto deste
livro, a minha teoria das edições humanas. O que por agora importa
saber é que Virgília — chamava-se Virgília — entrou na alcova,
firme, com a gravidade que lhe davam as roupas e os anos, e veio até
o meu leito. O estranho levantou-se e saiu. Era um sujeito, que me
visitava todos os dias para falar do câmbio, da colonização e da
necessidade de desenvolver a viação férrea; nada mais interessante
para um moribundo. Saiu; Virgília deixou-se estar de pé; durante
algum tempo ficamos a olhar um para o outro, sem articular palavra.
Quem diria? De dois grandes namorados, de duas paixões sem freio,
nada mais havia ali, vinte anos depois; havia apenas dois corações
murchos, devastados pela vida e saciados dela, não sei se em igual
dose, mas enfim saciados. Virgília tinha agora a beleza da velhice,
um ar austero e maternal; estava menos magra do que quando a vi, pela
última vez, numa festa de São João, na Tijuca; e porque era das
que resistem muito, só agora começavam os cabelos escuros a
intercalar-se com alguns fios de prata.
— Anda
visitando os defuntos? disse-lhe eu. — Ora, defuntos! respondeu
Virgília com um muxoxo. E depois de me apertar as mãos:
— Ando
a ver se ponho os vadios para a rua.
Não
tinha a carícia lacrimosa de outro tempo; mas a voz era amiga e
doce. Sentou-se. Eu estava só, em casa, com um simples enfermeiro;
podíamos falar um ao outro, sem perigo. Virgília deu-me longas
notícias de fora, narrando-as com graça, com um certo travo de má
língua, que era o sal da palestra; eu, prestes a deixar o mundo,
sentia um prazer satânico em mofar dele, em persuadir-me que não
deixava nada.
— Que
ideias essas! interrompeu-me Virgília um tanto zangada. Olhe que não
volto mais. Morrer! Todos nós havemos de morrer; basta estarmos
vivos.
E
vendo o relógio:
—
Jesus! são três horas. Vou-me embora.
— Já?
— Já;
virei amanhã ou depois.
— Não
sei se faz bem, retorqui; o doente é um solteirão e a casa não tem
senhoras...
— Sua
mana?
— Há
de vir cá passar uns dias, mas não pode ser antes de sábado.
Virgília
refletiu um instante, levantou os ombros e disse com gravidade:
— Estou
velha! Ninguém mais repara em mim. Mas, para cortar dúvidas, virei
com o Nhonhô.
Nhonhô
era um bacharel, único filho de seu casamento, que, na idade de
cinco anos, fora cúmplice inconsciente de nossos amores. Vieram
juntos, dois dias depois, e confesso que, ao vê-los ali, na minha
alcova, fui tomado de um acanhamento que nem me permitiu corresponder
logo às palavras afáveis do rapaz. Virgília adivinhou-me e disse
ao filho:
—
Nhonhô, não repares nesse grande
manhoso que aí está; não quer falar para fazer crer que está à
morte.
Sorriu
o filho, eu creio que também sorri, e tudo acabou em pura galhofa.
Virgília estava serena e risonha, tinha o aspecto das vidas
imaculadas. Nenhum olhar suspeito, nenhum gesto que pudesse denunciar
nada; uma igualdade de palavra e de espírito, uma dominação sobre
si mesma, que pareciam e talvez fossem raras. Como tocássemos,
casualmente, nuns amores ilegítimos, meio secretos, meio divulgados,
vi-a falar com desdém e um pouco de indignação da mulher de que se
tratava, aliás sua amiga. O filho sentia-se satisfeito, ouvindo
aquela palavra digna e forte, e eu perguntava a mim mesmo o que
diriam de nós os gaviões, se Buffon tivesse nascido gavião...
Era
o meu delírio que começava.
Machado
de Assis, in Memórias póstumas de Brás Cubas
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