Iago,
(à
direita),
interpretado por Kenneth Branagh, no filme de Oliver Parker, de 1995:
intrigas semeiam a dúvida na mente de Otelo, vivido por Lawrence
Fishburne.
Os
textos de William Shakespeare são caracterizados por descrições
minuciosas das paixões humanas e da loucura que muitas vezes as
acompanha. O dramaturgo inglês apreciava personagens extremados,
representações de violência e cenas de morte. A insanidade
desenvolvida por Otelo marcou a subjetividade ocidental, por sua
precisão e universalidade. É por esse motivo que análises do texto
continuam a surgir e a se contradizer reciprocamente e as
representações da peça nunca cessaram, desde sua primeira
montagem, em 1604. E muitos estudos e artigos privilegiam os aspectos
psíquicos do protagonista. Aparentemente, Shakespeare estava bem
informado sobre a então emergente ciência do alienismo, em uma
época na qual imperavam as superstições e conhecimentos sobre
demonologia. Isso o levou a desenvolver em sua obra uma abordagem
moderna da loucura, entendida essencialmente como a incapacidade de
perceber e interpretar as próprias emoções (ou paixões). Por isso
não surpreende que psiquiatras tenham utilizado um de seus
personagens mais famosos para designar um distúrbio comportamental:
a síndrome de Otelo.
A
trama é simples. Um prestigiado general de pele morena (Otelo, o
mouro) casa-se em segredo com a bela Desdêmona, filha de um nobre
veneziano. Iago, amigo e subordinado do protagonista – e um dos
mais famosos “malvados” da história do teatro –, faz de tudo
para arruinar esse casamento e prejudicar seu superior hierárquico.
Para atingir esse objetivo, instiga o ciúme, fazendo Otelo acreditar
que a mulher o trai com Cássio, um jovem tenente. O plano funciona
tão bem que Otelo acaba matando a mulher e suicidando-se em seguida.
Para quem assiste às malvadezas de Iago, suas mentiras e audácia
são de tirar o fôlego. Mas o conjunto dos personagens é
constantemente traído por uma retórica excessiva: ele finge expor
coisas que preferia esconder, mas que revela por se sentir obrigado
pela amizade e fidelidade que o ligam a seus interlocutores. O
mecanismo constitui a parte essencial do desenvolvimento do texto,
até o desfecho trágico.
Na
verdade, com exceção das mentiras mais ou menos sutis de Iago,
quais “provas” levarão Otelo a assassinar a esposa? Elas são
risíveis: um lenço perdido e misteriosamente encontrado nos
aposentos de Cássio, um mal-entendido durante uma discussão na qual
o tenente fala de sua amante Bianca (que Otelo toma erradamente por
Desdêmona), e as mãos úmidas da mulher, para ele um indício
revelador de sua infidelidade (quando na verdade ela está
simplesmente ansiosa). O cúmulo da ironia é que Otelo chega a
considerar seu próprio ciúme uma prova da infidelidade da esposa:
“Uma natureza não se deixaria invadir dessa forma pela sombra da
paixão (ou emoção) sem um bom motivo. (…) Não são meras
palavras que me tanto agitam”. E mesmo o assassinato de Desdêmona
constituirá uma prova complementar da culpabilidade dela: “Eu
sofreria a danação das profundezas do inferno, se não tivesse
chegado a esses extremos sem motivos justos”.
Embalado
pela eficácia de suas maquinações, Iago leva a simulação a ponto
de colocar Otelo contra seu próprio plano, na famosa fala: “Oh!
Cuidado com o ciúme, meu senhor! Ele é um monstro de olhos verdes,
que produz o alimento do qual se nutre! Esse chifrudo vive na alegre
embriaguez de quem, tendo certeza de sua adversidade, não ama aquela
que o trai; mas oh! que malditos minutos ele conta, esse que ama, mas
duvida, mas ama perdidamente!”. A ingenuidade do general, não
somente por confiar cegamente em Iago, mas, sobretudo, por apostar em
sua própria capacidade de discernimento, aparece em toda sua ironia
quando ele afirma, convicto, que não é homem de sucumbir com
facilidade ao ciúme. E Iago não precisa mais do que concluir
hipocritamente: “Eu devo rogar que não deis a minhas palavras um
desfecho mais grave, um alcance mais amplo do que o de mera
suspeita”.
A
peça é um estudo magistral do ciúme patológico, um tema inúmeras
vezes dissecado por pesquisas clínicas posteriores. Hoje, sabe-se,
por exemplo, que essa emoção extremamente perturbadora vem
acompanhada de perturbações psicológicas. Os homens são
particularmente sensíveis à simples representação mental de uma
infidelidade sexual e esses pensamentos costumam ser suficientes para
aumentar a pressão sanguínea e fazer soar o alarme do sistema
nervoso autônomo. Iago abusará dessa fragilidade para levar seu
general à loucura, por exemplo, quando sugere a ele, com ar de quem
não quer nada: “Agradar-lhe-ia assistir, estupefato, a um
grosseiro flagrante e vê-la ser assediada?”.
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