Quis
o destino, que é um gozador, que aqueles dois se encontrassem na
morte, pois na vida jamais se encontrariam. De um lado Cardoso, na
juventude conhecido como Dosão, depois Doso, finalmente - quando a
vida, a bebida e as mulheres erradas o tinham reduzido à metade -
Dozinho. Do outro lado Rodopião Farias Mello Nogueira Neto, nenhum
apelido, comendador, empresário, um dos pós-homens da República,
grande chato. Grande e gordo. O seu caixão teve que ser feito sob
medida. Houve quem dissesse que seriam necessários dois caixões, um
para o Rodopião, outro para o seu ego. Já Dozinho parecia uma
criança no seu caixaozinho. Um anjo encardido e enrugado. De Dozinho
no seu caixão, disseram:
-
Coitadinho.
De
Rodopião:
-
Como ele está corado!
Ficaram
em capelas vizinhas antes do enterro. Os dois velórios começaram
quase ao mesmo tempo. O de Rodopião (Rotary, ex-ministro, benemérito
do Jockey), concorridíssimo. O de Dozinho, em termos de público, um
fracasso. Dozinho só tinha dois ao lado do seu caixão quando
começaram os velórios. Por coincidência, dois garçons.
Tanto
Dozinho quanto Rodopião tinham morrido por vaidade. Dozinho, apesar
de magro ("esquálido", como o descrevia carinhosamente
dona Judite, professora, sua única mulher legítima), se convencera
de que estava ficando barrigudo e dera para usar um espartilho. Para
não fazer má figura no Dança Brasil, onde passava as noites. As
mulheres do Dança Brasil, só por brincadeira, diziam sempre: "Você
está engordando, Dozinho. Olhe essa barriga." E Dozinho
apertava mais o espartilho. Um dia caiu na calçada com falta de ar.
Não recuperou mais os sentidos. Claro que não morreu só disso.
Bebia demais. Se metia em brigas. Arriscava a vida por um amigo.
Deixava de comer para ajudar os outros. Se não fosse o espartilho,
seria uma navalha ou uma cirrose.
Rodopião
tinha ido aos Estados Unidos fazer um implante de cabelo e na volta
houve complicações, uma infecção e - suspeita-se - uma certa
demora deliberada de sua mulher em procurar ajuda médica.
E
ali estavam, Dozinho e Rodopião, sendo velados lado a lado. Dozinho,
o bom amigo, por dois amigos. Rodopião, o chato, por uma multidão.
O destino etc. Perto da meia-noite chegaram dona Judite, que
recém-soubera da morte do exmarido e se mandara de Del Castilho, e
Magarra, o maior amigo de Dozinho. Magarra chorava mais que dona
Judite. "Que perda, que perda", repetia, e dona Judite
sacudia a cabeça, sem muita convicção. A capela onde estava sendo
velado Rodopião lotara e as pessoas começavam a invadir o velório
de Dozinho, olhando com interesse para o morto desconhecido, mas sem
tomar intimidades. Magarra quis saber quem era o figurão da capela
ao lado. Estava ressentido com aquela afluência. Dozinho é que
merecia uma despedida assim. Um homem grisalho explicou para Magarra
quem era Rodopião. Deu todos os seus t¡tulos Magarra ficou ainda
mais revoltado. Não era homem de aceitar o destino e as suas ironias
sem uma briga. Apontou com o queixo para Dozinho e disse:
-
Sabe quem é aquele ali?
-
Quem?
-
Cardoso. O ex-senador.
-
Ah... - disse o homem grisalho, um pouco incerto.
-
Sabe a Lei Cardoso? Autoria dele.
Em
pouco tempo a notícia se espalhou. Estavam sendo velados ali não
um, mas dois notáveis da nação. A freqüência na capela de
Dozinho aumentou. Magarra circulava entre os grupos enriquecendo a
biografia de Cardoso.
-
Lembra a linha média do Fluminense? Década de 40. Tati, Matinhos e
Cardoso. O Cardoso é ele.
Também
revelou que Cardoso fora um dos inventores do raio laser, só que um
americano roubara a sua parte. E tivera um caso com Maria Callas na
Europa. Algumas pessoas até se lembravam.
-
Ah, então é aquele Cardoso?
-
Aquele.
A
capela de Dozinho também ficou lotada. As pessoas passavam pelo
caixão de Rodopião, comentavam: "Está com ótimo aspecto",
e passavam para a capela de Dozinho. Cumprimentavam dona Judite, que
nunca podia imaginar que Dozinho tivesse tanto prestígio (até um
representante do governador!), os dois garçons e Magarra.
-
Grande perda.
-
Nem me fale - respondia Magarra.
Veio
a televisão. Magarra foi entrevistado. Comentou a ingratidão da
vida. Um homem como aquele - autor da Lei Cardoso, cientista, com sua
fotografia no salão nobre do Fluminense, homem do mundo, um dos
luminares do seu tempo - só era lembrado na hora da morte. As
pessoas esquecem depressa. O mundo é cruel. A câmara fechou nos
olhos lacrimejantes de Magarra. A esta altura tinha mais público
para o Dozinho do que para o Rodopião. Pouco antes de fecharem os
caixões chegou uma coroa, para Dozinho.
Do
Fluminense.
O
acompanhamento dos dois caixões foi parelho, mas a televisão
acompanhou o de Dozinho. O enterro de Rodopião foi mais rápido
porque o acadêmico que ia fazer o discurso esqueceu o discurso em
casa. Todos se dirigiram rapidamente para o enterro do Cardoso, para
não perder o discurso de Magarra.
-
Cardoso! - bradou Magarra, do alto de uma lápide. - Mais do que
exéquias, aqui se faz um desagravo. A posteridade trará a justiça
que a vida te negou. Teus amigos e concidadãos aqui reunidos não
dizem adeus, dizem bem-vindo à glória eterna!
Naquela
noite, no Dança Brasil, antes de subir ao palco e anunciar o show do
Rubio Roberto, a voz romântica do Caribe, Magarra disse para
Mariuza, a favorita do Dozinho, que estranhara a ausência dela no
cemitério àquela manhã. Mariuza se defendeu:
-
Como é que eu ia saber que ele era tão importante?
E
chorou, sinceramente.
Luís
Fernando Veríssimo, in As mentiras que os homens contam
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