Nietzsche, por Fabrizio Cassetta
Pode-se
supor que um espírito, em que o tipo “espírito livre” deva
tornar-se alguma vez maduro e doce até a perfeição, teve seu
acontecimento decisivo em um grande livramento e, por isso
mesmo, que era antes um espírito ainda mais prisioneiro e parecia
acorrentado para sempre a seu canto e pilar. O que liga mais
firmemente? Que malhas são quase impossíveis de rasgar? Em homens
de uma espécie alta e seleta serão os deveres: aquela veneração,
que é própria da juventude, aquela reserva e delicadeza diante de
tudo o que já foi venerado e digno desde sempre, aquela gratidão
pelo chão do qual cresceram, pela mão que os conduziu, pelo
santuário onde aprenderam a rezar – até mesmo seus instantes
supremos os prenderão com a máxima firmeza, os obrigarão mais
duradouramente. O grande livramento, para os que estão presos a tal
ponto, vem subitamente, como um tremor de terra: a alma jovem é
abalada de uma vez, arrancada, arrebatada – ela mesma não entende
o que se passa. Um impulso e ímpeto reina e se torna senhor dela
como um comando; desperta uma vontade e desejo de ir avante, para
onde for, a qualquer preço; uma impetuosa e perigosa curiosidade por
um mundo inexplorado se inflama e crepita em todos os seus sentidos.
“Antes morrer do que viver aqui” - assim soa a voz imperiosa e a
sedução: e este “aqui”, esse em “casa”, é tudo aquilo que
ela havia amado até então! Um súbito pavor e premonição contra
aquilo que ela amava, um relâmpago de desprezo contra aquilo que
para ela se chamava “dever”, um desejo tumultuoso, arbitrário,
vulcânico, de andança, estrangeiro, estranhamento, resfriamento,
sobriedade, enregelamento, um ódio ao amor, talvez um gesto e um
olhar iconoclastas para trás, para ali onde ela até então rezara e
amara, talvez uma brasa de vergonha daquilo que acaba de fazer e, ao
mesmo tempo, um regozijo por tê-lo feito, um arrepio bêbado,
interno, jubilante, em que se denuncia uma vitória – uma vitória?
sobre o quê? sobre quem? Uma enigmática, interrogativa,
problemática vitória, mas sempre a primeira vitória: - eis o que
há de ruim e doloroso na história do grande livramento. É, ao
mesmo tempo, uma doença, que pode destruir o homem, essa primeira
irrupção de força e vontade de autodeterminação, de valoração
própria, essa vontade de vontade livre: e quanto de doença se
exprime nos selvagens ensaios e excentricidades com que o que se
livrou, o libertado, procura doravante demonstrar seu domínio sobre
as coisas! Ele ronda cruelmente, com uma cupidez insatisfeita; o que
ele pilha tem de pagar pela perigosa tensão de seu orgulho; ele
estraçalha o que o atrai. Com um riso maldoso ele revira o que
encontra encoberto, poupado por alguma vergonha: ensaia como seria o
aspecto dessas coisas quando viradas no avesso. É arbítrio e gosto
pelo arbítrio, se talvez ele dispensa agora seu favor ao que até
então tinha má reputação – se ele, curioso e inquisidor, se
esgueira ao redor do mais proibido. No fundo de sua agitação e
errância – pois ele é intranquilo e sem rumo em seu caminho como
em um deserto – está o ponto de interrogação de uma curiosidade
cada vez mais perigosa. “Não se pode desvirar todos os valores? E
bom é talvez mau? E Deus apenas uma invenção e refinamento do
diabo? É talvez tudo, no último fundo, falso? E se somos os
enganados, não somos por isso mesmo também enganadores? não temos
de ser também enganadores?” — tais pensamentos o conduzem e
seduzem, cada vez mais adiante, cada vez mais além. A solidão o
rodeia e enrodilha, cada vez mais ameaçadora, mais sufocante,
apertando mais o coração, aquela terrível deusa e mater saeva
cupidinum [selvagem mãe das paixões] – mas quem sabe, hoje, o
que é solidão?…
Friedrich
Nietzsche, in Humano, demasiadamento humano
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