O Matemático, de Paul Hartal
Ó
matemáticas severas, não vos esqueci, desde que vossas sábias
lições, mais doces que o mel, infiltraram-se no meu coração, qual
onda refrescante. Aspirava instintivamente, desde o berço, a beber
em vossa fonte, mais antiga que o sol, e continuo ainda a percorrer o
piso sagrado de vosso templo solene, eu, o mais fiel de vossos
iniciados. Havia qualquer coisa de vago no meu espírito, um não sei
quê espesso como a fumaça; mas soube transpor religiosamente os
degraus que levam a vosso altar, e afugentastes esse véu escuro,
assim como o vento empurra uma tempestade. Colocastes, em seu lugar,
uma excessiva frieza, uma prudência consumada, e uma lógica
implacável. Com a ajuda de vosso leite fortificante, minha
inteligência desenvolveu-se rapidamente, tomando proporções
imensas, em meio a essa claridade encantadora com que presenteais,
com prodigalidade, aqueles que vos amam de um amor sincero.
Aritmética! álgebra! geometria! trindade grandiosa! triângulo
luminoso! Quem vos desconhece é um insensato. Mereceria a provação
dos maiores suplícios; pois mostra um desprezo cego em sua ignorante
apatia; mas quem vos conhece e vos aprecia nada quer dos bens
terrestres; contenta-se com vossos prazeres mágicos; e, carregado
por vossas asas sombrias, deseja apenas levantar-se, com um voo
ligeiro, construindo uma hélice ascendente, rumo à borda esférica
do céu. A terra só lhe mostra ilusões e fantasmagorias morais; mas
vós, matemáticas concisas, pelos encadeamentos rigorosos de vossas
proposições tenazes e a constância das vossas leis de ferro,
fazeis brilhar, aos olhos deslumbrados, um reflexo poderoso dessa
verdade suprema na qual se percebe a marca de uma ordem do universo.
Mas a ordem que vos rodeia, representada principalmente pela
regularidade perfeita do quadrado, o amigo de Pitágoras, é maior
ainda; pois o Todo-Poderoso revelou-se completamente, ele e seus
atributos, no trabalho memorável que consiste em fazer sair das
entranhas do caos vossos tesouros de teoremas e vossos magníficos
esplendores. Nas eras antigas e nos tempos modernos, mais de uma
grande imaginação humana viu seu gênio espantar-se, diante de
vossas figuras simbólicas traçadas sobre um papel ardente, qual
outros tantos sinais misteriosos, que vivem de um hálito latente,
que não são compreendidos pela vulgaridade profana, revelação
estrepitosa de axiomas e hieróglifos eternos, que existiram antes do
universo e se manterão depois dele. E ele se interroga, debruçado
diante do precipício de um ponto de interrogação fatal, como é
possível que as matemáticas contenham grandezas tão imponentes e
tanta verdade incontestável, enquanto, ao compará-las com o homem,
só encontra neste último o falso orgulho e a mentira. Então, esse
espírito superior, entristecido, ao qual a nobre familiaridade de
vossos conselhos faz sentir com maior intensidade a pequenez da
humanidade, e sua incomparável loucura, mergulha a cabeça
embranquecida na mão descarnada e permanece absorvido em meditações
sobrenaturais. Inclina seu joelho à vossa frente, e sua veneração
presta homenagem ao vosso rosto divino, como à própria imagem do
Todo-Poderoso. Na minha infância, aparecestes, uma noite de maio, ao
clarão da lua, sobre uma planície verdejante, às margens de um
límpido regato, as três iguais em graça e pudor, as três cheias
de majestade, como rainhas. Traçastes alguns passos na minha
direção, com vosso longo manto, flutuando como um vapor, e me
atraístes para vossos altivos seios, como se eu fosse um filho
abençoado. E foi então que acorri apressadamente, as mãos
crispadas sobre vosso alvo pescoço. Alimentei-me, com
reconhecimento, de vosso maná fecundo, e senti que a humanidade
crescia em mim, e se tornava melhor. Desde então, ó deusas rivais,
nunca mais vos abandonei. Desde então, quantos projetos enérgicos,
quantas simpatias, que acreditava gravadas nas páginas de meu
coração, como em mármore, não foram apagando lentamente, do meu
raciocínio desenganado, suas linhas configurativas, como a aurora
nascente que apaga a sombra da noite! Desde então, vi a morte, na
intenção, visível a olho nu, de povoar os túmulos, devastar os
campos de batalha, alimentada pelo sangue humano, e fazer crescer
flores matinais no meio das ossadas fúnebres. Desde então, assisti
as revoluções do nosso planeta; os tremores de terra, os vulcões,
com sua lava ardente, o simum dos desertos e os naufrágios da
tempestade tiveram minha presença como espectador impassível. Desde
então, vi inumeráveis gerações humanas levantarem, pela manha,
suas asas e seus olhos, em direção ao espaço, com o prazer
inexperiente da crisálida que saúda sua verdadeira metamorfose, e
morrerem ao entardecer, antes do pôr do sol, a cabeça curvada, como
flores fanadas balançadas pelo soprar lamentoso do vento. Vós,
porém, permaneceis sempre as mesmas. Nenhuma mudança, nenhum ar
empesteado roça os rochedos escarpados e os imensos vales de vossa
identidade. Vossas pirâmides modestas durarão muito mais que as
pirâmides do Egito, formigueiros levantados pela estupidez e pela
escravidão. O fim dos séculos ainda verá, de pé sobre as ruínas
dos tempos, vossas cifras cabalísticas, vossas equações lacônicas,
e vossas linhas esculturais, repousando à direita vingadora do
Todo-Poderoso, quando as estrelas mergulharem com desespero, como
trombas, na eternidade de uma noite horrível e universal, enquanto a
humanidade, contorcendo-se, tentar prestar contas no Juízo Final.
Obrigado, pelos inumeráveis serviços que me prestastes. Obrigado,
pelas estranhas qualidades com que enriquecestes minha inteligência.
Sem vós, na minha luta contra o homem, eu poderia talvez ser
derrotado. Sem vós, poderia ter rolado na sujeira e abraçado a
poeira dos pés deles. Sem vós, com uma pérfida garra, teriam
penetrado minha carne e meus ossos. Mas permaneci em guarda como um
atleta experimentado. Vós me destes a frieza que surge das vossas
concepções sublimes, isentas de paixões. Servi-me dela para
recusar com desprezo os prazeres efêmeros de minha curta viagem e
para devolver, da minha porta, as oferendas simpáticas, mas
ilusórias, dos meus semelhantes. Vós me destes a prudência
constante que se decifra a cada passo em vossos métodos admiráveis
de análise, síntese e dedução. Servi-me dela para derrotar as
artimanhas perniciosas do meu inimigo mortal, para atacar, por minha
vez, com destreza, e mergulhar, nas vísceras do homem, um punhal
agudo que permanecerá para sempre enfiado no seu corpo. Porque essa
é uma ferida da qual ele não se curará. Vós me destes a lógica,
que é como a essência dos vossos ensinamentos cheios de sabedoria;
com seus silogismos, cujo labirinto complicado me é cada vez mais
compreensível, minha inteligência viu duplicarem suas forças
audaciosas. Por meio desse auxiliar terrível, descobri na humanidade
que nada rumo às profundezas, diante dos escolhos do ódio, a
maldade negra e horripilante, que crescia em meio a miasmas
deletérios, admirando seu próprio ventre. Antes de mais nada,
descobri, nas trevas de suas entranhas, o vício nefasto, o mal!
superior nele ao bem. Com esta arma envenenada que vós me
concedestes, fiz descer de seu pedestal, construído pela covardia do
homem, o próprio Criador! Rilhava os dentes, enquanto sofria
ignominioso insulto; pois tinha como adversário alguém mais forte
do que ele. Porém deixá-lo-ei de lado, como um pacote de trapos,
para abaixar meu voo... O pensador Descartes fazia, um dia, a
reflexão de nada sólido ter sido construído sobre vós. É um modo
engenhoso de lazer com que se entenda que o primeiro recém-chegado
jamais poderia descobrir imediatamente vosso valor inestimável. Com
efeito, que pode haver de mais sólido que as três qualidades
principais já nomeadas, elevando-se, entrelaçadas como uma corda
única, sobre o píncaro augusto de vossa arquitetura colossal?
Monumento que cresce sem cessar em quotidianas descobertas, em vossas
minas de diamantes, e explorações científicas, em vossos soberbos
domínios. Ó matemáticas santas, serieis capazes, por vosso
perpétuo comércio, de consolar o restante dos meus dias da maldade
do homem e da injustiça do Grande-Todo!
Conde
de Lautréamont,
in Cantos
de Maldoror
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