Estava
ele exercendo suas habilidades na feira de Água dos Meninos, ao
baralho. Ao fazê-lo com tanta simplicidade, concorria para a alegria
espiritual de alguns choferes de marinete e caminhão, colaborava na
educação de dois molecotes que iniciavam seu aprendizado prático
da vida e ajudavam uns quantos feirantes a gastar os lucros obtidos
nas vendas do dia. Realizava assim obra das mais louváveis. Não se
explica, por consequência, que um dos feirantes não parecesse
entusiasta de seu virtuosismo ao bancar, rosnando entre dentes que
tanta sorte fedia a bandalheira. Cabo Martim levantou para o
apressado crítico seus olhos de azul inocência, ofereceu-lhe o
baralho para que ele bancasse, se quisesse e para tanto possuísse a
necessária competência. Quanto a ele, cabo Martim, preferia apostar
contra a banca, quebrá-la rapidamente, reduzir o banqueiro à mais
negra miséria. E não admitia insinuações sobre sua honestidade.
Como antigo militar, era particularmente sensível a qualquer
murmúrio que envolvesse dúvidas sobre sua honradez. Tão sensível
que a uma nova provocação seria obrigado a quebrar a cara de
alguém. Cresceu o entusiasmo dos rapazolas, os choferes esfregaram
as mãos, excitados. Nada mais deleitável do que uma boa briga,
assim gratuita e inesperada. Nesse momento, quando tudo podia se
passar, surgiram Curió e Negro Pastinha carregando a notícia
trágica e a garrafa de cachaça com um restinho no fundo. Ainda de
longe gritaram para o Cabo:
–
Morreu! Morreu!
Cabo
Martim fitou-os com olho competente, demorando-se na garrafa em
cálculos precisos, comentou para a roda:
–
Aconteceu alguma coisa importante para
eles já terem bebido uma garrafa. Ou bem Negro Pastinha ganhou no
bicho ou Curió ficou noivo.
Porque
sendo Curió um incurável romântico, noivava frequentemente, vítima
de paixões fulminantes. Cada noivado era devidamente comemorado, com
alegria ao iniciar-se, com tristeza e filosofia ao encerrar-se, pouco
tempo depois.
–
Alguém morreu... – disse um chofer.
Cabo
Martim estende o ouvido.
–
Morreu! Morreu!
Vinham
os dois curvados ao peso da notícia. Das Sete Portas à Água dos
Meninos, passando pela rampa dos saveiros e pela casa de Carmela,
haviam dado a triste nova a muita gente. Por que cada um, ao saber do
passamento de Quincas, logo destampava uma garrafa?
Não
era culpa deles, arautos da dor e do luto, se havia tanta gente pelo
caminho, se Quincas tinha tantos conhecidos e amigos.
Naquele
dia começou-se a beber na cidade da Bahia muito antes da hora
habitual. Não era para menos, não é todos os dias que morre um
Quincas Berro Dágua.
Cabo
Martim, esquecido da briga, o baralho suspenso na mão, observava-os
cada vez mais curioso. Estavam chorando, já não tinha dúvidas. A
voz do Negro Pastinha chegava estrangulada:
–
Morreu o pai da gente...
– Jesus
Cristo ou o governador? – perguntou um dos molecotes com vocação
de piadista. A mão do negro o suspendeu no ar, atirou-o no chão.
Todos compreenderam que o assunto era sério, Curió levantou a
garrafa, disse:
– Berro
Dágua morreu!
Caiu
o baralho da mão de Martim. O feirante malicioso viu confirmarem-se
suas piores suspeitas: ases e damas, cartas do banqueiro,
espalharam-se em quantidade. Mas também até ele chegara o nome de
Quincas, resolveu não discutir. Cabo Martim requisitava a garrafa de
Curió, acabou de esvaziá-la, atirou-a fora com desprezo. Olhou
longamente a feira, os caminhões e marinetes na rua, as canoas no
mar, a gente indo e vindo. Teve a sensação de um vazio súbito, não
ouvia sequer os pássaros nas gaiolas próximas, na barraca de um
feirante. Não era homem de chorar, um militar não chora mesmo após
ter deixado a farda. Mas seus olhos ficaram miúdos, sua voz mudou,
perdeu toda a fanfarronada. Era quase uma voz de criança ao
perguntar:
– Como
pôde acontecer?
Juntou-se
aos outros, após recolher o baralho, faltava ainda encontrar
Pé-de-Vento. Esse não tinha pouso certo, a não ser às quintas e
domingos à tarde, quando invariavelmente brincava na roda de
capoeira de Valdemar, na estrada da Liberdade. Fora isso, sua
profissão levava-o a distantes lugares. Caçava ratos e sapos para
vendê-los aos laboratórios de exames médicos e experiências
científicas – o que tornava Pé-de-Vento figura admirada, opinião
das mais acatadas. Não era ele um pouco cientista, não conversava
com doutores, não sabia palavras difíceis?
Só
após muito caminho e vários tragos, deram com ele, embrulhado em
seu vasto paletó, como se sentisse frio, resmungando sozinho.
Soubera da notícia por outras vias e também ele buscava os amigos.
Ao encontrá-los, meteu a mão num dos bolsos. Para retirar um lenço
com que enxugar as lágrimas, pensou Curió. Mas das profundezas do
bolso Pé-de-Vento extraiu pequena jia verde, polida esmeralda.
– Tinha
guardado para Quincas, nunca encontrei uma tão bonita.
Jorge
Amado, in A morte de Quincas Berro Dágua
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