Roberto
quer saber quanto tempo falta para ficar louco. Joel exala um cheiro
acre. Longe dali, muito ao norte da cidade, Flávia não chora.
Flávia não se trancou para chorar, mas para fugir das lágrimas dos
outros.
Não
há luz elétrica na cela onde Roberto afunda a cara nas mãos, e é
uma sorte. A noite despencou, violenta, através das grades. Roberto
está banhado de suor. O calor arranca um cheiro insuportável do
corpo de Joel. Assim como está, Joel parece mais alto. Ainda que a
caída da noite não alivie a asfixia da umidade quente da cela, ao
menos serve para bonar os rasgos do rosto desolado estendido aqui no
chão, ao alcance da mão, com a mandíbula destroçada por um dos
tiros. Desde que os guardas atiraram o cadáver de Joel no chão de
cimento, Roberto, agachado contra a parede, não foi capaz de se
mover. “Aqui deixamos teu amigo, para te fazer companhia.” Tinham
moído os ossos de Roberto a porradas, mas não é por isso que ele
está paralisado.
Flávia
não sabe onde está Joel. Reclamamos o corpo, Flávia. As vozes
parecem trapos. Ela tampouco se mexeu. Há horas permanece deitada
sobre o altar, com a testa afundada num buraco de pedra e os braços
caídos, inertes, junto ao corpo. Sobre a cabeça de Flávia ergue-se
a lança do santo guerreiro, relampejando à luz das velas que trazem
calor ao ar inchado de dezembro. Atrás do cavalinho branco de São
Jorge – patas voadoras, crinas flamejantes – há um
porta-retratos de moldura dourada. Dentro do porta-retratos sorri,
melancólico, envolvido em barba rala e fumaça de um charuto
Partagás, o rosto de outro santo vingador muito mais atual. A maré
dos murmúrios surge sem descanso através da parede de papelão,
coitadinha, ave-maria, coitadinha, as orações e as queixas dos
parentes e dos amigos e dos vizinhos. Flávia não quer sair, Flávia
não quer ficar.
Roberto
continua sentado no chão. As estrelas arrebentam no céu e Roberto
não as vê, os habitantes da cidade se atropelam pelas avenidas e
ele não os ouve. Os habitantes da cidade estão sãos e salvos e
lembram disso uns aos outros, alguém vira porque alguém passa, cada
um sente as próprias pernas no ritmo das pernas dos outros: cada
formiga toca as antenas de outra formiga. Roberto escuta nada mais
que o ir e vir dos passos do guarda, que não tem rosto nem responde
perguntas. Escuta, também, às vezes, chiado de uma centopéia que
cai do teto. Um retângulo de luz, cortado pelas sombras das barras
de ferro, se projeta na parede; de tanto em tanto, é coberto pelo
corpo do guarda que passa. Passou um dia. Quanto falta, Roberto?
Quanto tarda um homem em ficar louco? Ontem à noite, a esta hora,
Roberto estava livre, o motor se negava a responder, uma sensação
de náusea subia do fundo do estômago de Roberto, e ele preferia
jogar a culpa sobre os cigarros. Antes dos tiros, Joel tinha dito:
“Não te desejo sorte, conspirador. Gente como você não precisa
de sorte”. Tinham se abraçado, e depois Joel tinha tocado com o
dedo indicador a linha de vida de sua mão esquerda. Joel sempre
fazia isso. Tinha uma linha de sete vidas, longa e sem rachaduras.
Sorria com todos os dentes: “Coisa ruim não morre”.
Fazia
mais de um ano que Flávia não via Joel. Joel nunca soube que seu
filho dizia papai para o sapato. Flávia sim, sabe que nunca
inventará com ninguém o que inventara, era tanta a alegria, para
Joel. Para quem, agora? Para quê, agora? Todos os quadrinhos vazios
de todos os futuros calendários... Todos os dias serão quarta-feira
de cinzas; dias de derrota. Um cara assim se acaba e não há
substituto. Joel, que era capaz de acender o fogo com os olhos ou com
as mãos. Flávia, que vai precisar, mas não vai querer esquecer.
Roberto, que se pergunta se existe um jeito de defender-se da
loucura, quando a loucura avança na escuridão como um gato que fede
a coisa podre e tem lanternas nos olhos. Flávia quebra as unhas
contra o altar de pedra e as gotas de suor despencam, lentas, das
sobrancelhas de Roberto. Roberto morde os lábios até sentir o sabor
do próprio sangue. Sente prazer; e alívio. E se gritasse? Esse
morto está tomando meu lugar. Mas eu não sabia, Joel. Por que você
não saiu? Que culpa...? Foi uma loucura ficar, Joel. O motor não
pegava, Roberto triturava a chave do carro e o motor não pegava. A
bateria? As velas? O platinado? Você mesmo, Joel, tinha dito que
esse carro não servia. E soaram os primeiros tiros e finalmente o
motor pegou, Joel, a explosão da chispa, o rumor da salvação, os
quatro pistões comprimindo e libertando toda aquela força e eu
esperava você, Joel, eu esperei durante um século, os tiros
estouravam na minha cabeça e eu não via ninguém, nem você nem
eles nem ninguém e o pé esmagou o acelerador por conta própria, o
acelerador até o fundo, e eu acreditei... Sim, eu, eu comecei a
voar. Mas o motor falhava. O motor estava morrendo, Joel.
Esvaziaram
nele os carregadores de várias pistolas, dessas de regulamento. Uma
boa quantidade de chumbo no corpo de Joel. As balas 45 são gordas
como dedos. A mão de Joel ficou crispada no cabo do revólver que já
estava com o tambor vazio. Desenharam com giz os limites do corpo no
asfalto. O giz escorregava. Também o crivaram os disparadores das
máquinas fotográficas, os polegares dos fotógrafos nos gatilhos
das rolleys e das leikas, antes e depois de que virassem o corpo e
aparecesse este rosto que tinha sido tão simpático.
“Tem
um homem morto ali. Tem nove furos de bala.” E Flávia não
desmaiou nem chorou nem nada. Recordou: “Feitiço, coisa feita... O
fogo não sente frio. A água não sente sede. O vento não sente
calor. O pão não sente fome”. E Roberto despertou, depois do
capuz e dos choques e da surra, no chão da cela, e, mesmo que não
tivessem ainda trazido Joel, os olhos abertos de Joel já estariam
acusando-o de continuar vivo.
Eduardo
Galeano,
in Vagamundo
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